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O VIAJANTE INCAPAZ

Depois de 36 longas horas, enfim cheguei à Porto Alegre, moído de cansaço e com o estômago embrulhado por tantas porcarias consumidas no caminho percorrido de Brasília até minha cidade. Uma verdadeira aventura, cujo trágico destaque foi a presença de um senhor completamente incapaz entre os passageiros.


Eu havia entrado no ônibus da empresa Real Expresso há alguns minutos e, enquanto me acomodava em meu assento, vi que um senhor de baixa estatura e aspecto simples se aproximava do seu banco, de n. 27, em frente ao meu. Acompanhado de um suposto sobrinho, instalou-se no lugar e foi orientado a ficar ali até o seu destino, Florianópolis, onde um irmão o esperava. O sobrinho partiu e deixou o seu tio.

Minutos após o ônibus partir, o idoso já dava mostras de como seria conturbada a jornada. As luzes comuns internas do veículo se apagaram para a viagem noturna (partimos às 20h30min), mas o homem logo acendeu a sua individual, não para ler, mas para defender-se da escuridão. Ela permaneceria acesa pelas próximas doze horas. Pouco depois, tentou se comunicar com o passageiro do banco vizinho, o qual se esforçava para entender cada letra que ouvia. O ancião tinha uma dentadura que se encontrava já frouxa em sua boca, e para evitar sua perda, contraía os lábios superiores sob os dentes, segurando-a. Unindo tal esforço a alguma outra debilidade na fala, compreender suas palavras era um ato heroico. De qualquer forma, alguma coisa apreendia, e o passageiro vizinho entendeu que aquele que lhe falava rumava para Florianópolis ver o irmão, mas que estava no ônibus errado. Curioso, o vizinho verificou o bilhete do velho homem e explicou que  o ônibus ia para o caminho certo.

O idoso discordou e não foi convencido do contrário até o fim da viagem.

Como expectador de tudo, pois estava sentado no banco imediatamente atrás do célebre passageiro, vi que este não estava em condições normais, e sua debilidade ia bem além, ao menos diante dos fatos ocorridos, de problemas de fala. Tratava-se de uma pessoa sem plenas condições de discernimento e que não poderia estar viajando sozinha,  entregue à própria sorte pelas próximas trinta horas que a separavam de seu destino e daqueles que supostamente a aguardavam.

Durante toda a noite e madrugada, o homem não sentou e relaxou, salvo por breves e isolados minutos, pois logo ficava sobre o braço de sua cadeira, até que finalmente se levantava e olhava atentamente para todo o ônibus e pelas janelas de ambos os lados, sempre com resmungos orais ou gestos afirmando que estava indo para o lugar errado. Caminhava de um lado o para o outro do corredor, repetidamente, e com o decorrer das horas, os resmungos se tornaram xingamentos em alto e bom tom, com palavrões pesados e desarrazoados, alguns para o ar e outros contra o motorista. Ninguém entendia bem o que estava acontecendo, mas o fato é que a situação era delicada, pois o pobre ancião não poderia ser tratado da mesma maneira que uma pessoa em suas plenas condições físicas e psicológicas. A situação tornou-se ainda pior quando o idoso começou a se debater de raiva em sua poltrona, socando seus braços apoio, arremessando a mochila contra o chão e a janela e, pior, dando tapas e murros em sua própria cabeça, absurdamente estressado com aquela situação.

Não dormi nada durante a noite, com os olhos vidrados no velho, que não parava de falar sozinho, xingar o ar e agredir a si próprio e aos objetos ao seu redor, e assim foi até depois que o sol raiou, quando cismou que deveria descer e pegar o "ônibus correto", inclusive com o carro em movimento. Os passageiros tiveram de contê-lo diversas vezes, impedindo-o de avançar contra o motorista. Descobrimos, pelo registro da passagem, o telefone de seus parentes de Brasília, mas foi em vão: o telefone tocava e ninguém atendia.

A situação da longa viagem estava insustentável, quando o ônibus parou em um posto da Polícia Rodoviária Federal, mais ou menos na altura de Lins-SP, solicitando algum auxílio. O policial disse que poderia encaminhá-lo para algum assistente social, mas aconselhou o motorista a procurar o profissional na próxima rodoviária, ou tentar aguentar o tranco até Florianópolis, quando deveria verificar se algum parente de fato o aguardava. Seguimos o conselho do tira, e o ancião enfim se acalmou a partir daí.

Na verdade, a calmaria do pobre homem era relativa. Ele não mais xingava o motorista, nem agredia a si próprio, mas tinha surtos de choro e repetia diversas vezes que "estava errado", referindo-se ao caminho. Não compreendia plenamente o que falávamos. Mudou-se de lugar e ficou quase que o dia inteiro em pé, com o nariz grudado no vidro que separava a cabine do motorista do resto do ônibus, observando trajeto percorrido. Exausto, pois não dormira nada durante a noite e cochilara por poucos minutos à tarde, rendeu-se ao sono nas últimas três horas de viagem, até que, finalmente, quase à 1h da madrugada de hoje, alcançou o seu objetivo: Florianópolis. De fato, alguns parentes o aguardavam e foi bom ver o sorriso do idoso quando os reconheceu, o primeiro desde a partida de Brasília, trinta longas horas antes.

A grande questão, aqui, foi o absurdo cometido por seus parentes na Capital Federal. Um homem naquelas condições jamais poderia viajar sozinho, ainda mais de ônibus, por uma longa e cansativa jornada. Os passageiros do veículo e os diversos motoristas viveram terríveis momentos, que no início era um incômodo, mas depois de observarem que o senhor não estava no pleno domínio de suas faculdades, sentiram pena e indignação em relação àqueles que o fizeram passar por tamanho sofrimento e ansiedade. O ancião poderia ter se machucado e se perdido em uma das tantas paradas que foram feitas, nas quais ele quase sempre descia de "mala e cuia", pronto para partir, o que só não aconteceu por que era impedido pelos passageiros. Além disso, carregava pouco dinheiro, e para alimentar-se e hidratar-se teve que ser ajudado pelos demais que com ele viajavam. Uma total irresponsabilidade deixar um ser humano naquelas condições, completamente sozinho por tantas horas.

Um ato de desamor e indiferença, por melhores que tenham sido as intenções de enviá-lo à Santa Catarina para reencontrar o irmão.

O que poderia ter sido feito para evitar esse ocorrido? No caso de incapazes menores de idade, é fácil: verifica-se a idade. Mas no caso de um idoso, o furo é mais embaixo, afinal, uma pessoa de 60 anos pode estar muito mais debilitada do que uma de 90, por exemplo, dependendo do caso. Logo, se a prevenção é algo muito difícil, o melhor modo de combater esse típico de prática seria a punição dos familiares irresponsáveis que enviaram o pobre idoso para esta solitária jornada.

Caso contrário, a mesma história, exatamente com o mesmo protagonista, se repetirá, pois haverá uma viagem de volta, que será - embora com outros passageiros e, talvez, diferentes motoristas-, mais uma vez, longa, cansativa e solitária. Será que ele conseguirá tornar à casa, ou se perderá em uma das paradas no caminho? Trata-se de um risco pelo qual tal idoso não merece correr.








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