Pular para o conteúdo principal

O "LISTÃO DAS GURIA" E OS "LISTÕES" DA VIDA


A notícia é de sexta-feira, mas apenas agora tive tempo para escrever a respeito. Estudantes do Colégio Anchieta, em Porto Alegre, revoltadas com um tradicional “listão” das alunas mais bonitas feitas pelos estudantes do sexo masculino da instituição, fizeram uma manifestação criticando o ato e, em protesto, publicaram um listão alternativo, no qual constam todas as alunas do 3º Ano do Ensino Médio, em que cada uma é destacada com uma característica positiva. A iniciativa, que teve razoável repercussão na imprensa, foi justificada, em suma, pela revolta das alunas acerca da “objetificação” da mulher feita pelo colegas homens, e pelos grandes problemas gerados em alunas que ficavam “de fora” da lista e, assim, excluídas do padrão de beleza vigente, o que lhes gerava, em certa medida, sofrimento e angústia.

http://www.osul.com.br/alunas-do-anchieta-fazem-protesto-contra-listao-com-ranking-de-beleza/

E então? O que esse fato nos traz como reflexão? Alguns diriam que a iniciativa é positiva, afinal, tratou-se de mais uma denúncia contra atos tidos como tradicionais em uma sociedade machista, e que resultou na união das mulheres em torno de uma demanda comum há muito reprimida, o que acabou por envolver uma onda de solidariedade entre elas. Outros diriam que a reação foi desproporcional, politizando-se uma brincadeira inocente e recorrente, refeltindo, na verdade, uma reação encabeçada por pessoas insatisfeitas por não constarem na lista e, a partir de sua liderança e contemporaneidade da temática, tiveram capacidade de mobilizar um amplo número de meninas. Como veremos, ambas as conclusões são pertinentes, mas é preciso ir um pouco mais fundo.

Brincadeiras como essas são e sempre foram recorrentes e, em maior ou menor grau, polêmicas. Já faz 17 anos que iniciei o meu último ano escolar, ou seja, as pessoas que estão na reta final do Ensino Médio estavam nascendo nos anos de 2002 e 2003. Lembro-me que em 2001, ainda no 2º Ano do Ensino Médio, meus colegas fizeram uma eleição dessas em que “ranquearam” as gurias mais bonitas de nossa turma. Elas, como “resposta”, fizeram a lista delas. Recordo-me que, mesmo com 1,66 m de altura, fui eleito “o mais forte” (sim, eu era fortinho, mas porque desenvolvi meus músculos mais cedo, razão pela qual embatumei nessa altura mesmo, crescendo, a partir de então, apenas para os lados). Justiça seja dita, “empatei” com o Rafael Companhoni, que embora alto e de ombros largos, musculoso nunca foi, o que demonstra que a ideia das gurias sobre “força” foi ou equivocada, ou irônica ou, no mínimo, complexa. De qualquer forma, estive naquela lista, assim como estaria na de 2002, agora na condição de “o mais simpático”, o que tradicionalmente é reservado para aqueles caras legais, amigos e queridos, mas que, numa análise bem compassiva, não são dotados de uma beleza estonteante ou digna de ser objetivamente classificada. Talvez seja o prêmio de consolação do feio. Nunca saberei. Como tira-teima, a Roberta me escolheu como o homem de sua vida; não tenho dúvidas de que a Glória me acha o Super-Homem que, com óculos, é o Clark Kent; minha mãe sempre disse que sou bonito; e o Henrique, meu irmão mais novo, sempre quando (ainda) brincamos de “lutinha”, me diz que sou forte. Logo, há amostras confiáveis sobre a minha força, beleza e “simpatia” (estou rindo sozinho de mim mesmo).

O fato é que, quando feitas as listas, eu e todos nos divertíamos, assim como fazíamos ao elaborar a das meninas. Nem todos os caras estavam na lista dos homens, o que era motivo para um “bullying” de cinco segundos com aquele porventura deixado de fora, o que era esquecido por ele e pelos que lhe tiraram sarro alguns insignificantes minutos depois, assim como aquela lista que não duraria mais do que uma semana na parede da sala de aula. Quanto às consequências da lista das meninas, serei honesto em dizer que desconheço, e esse é o gancho para aquilo que gostaria de trazer como reflexão.

É evidente que, ao olhar para trás e recordar da época da escola, vem-me à cabeça as colegas lindas, as bonitinhas, as de beleza que não me chamavam a atenção nem negativa nem positivamente e aquelas que, realmente, eram, aos meus olhos, feias. Isso sem falar em categorias psicossociais, como “simpatia”. Sim, a beleza existe e ela é uma categoria de análise, de verificação de um ser humano em relação ao outro. De fato, sempre haverá um “padrão” de beleza que varia com o tempo. Basta vermos as pinturas renascentistas daquelas gordinhas sensuais dos séculos XVI e XVII em comparação com as top models da atualidade. Entretanto, é fato que todos possuem em seus olhos filtros que envolvem a beleza padrão e a beleza que só o individuo vê. Caso apenas a chamada “beleza padrão” fosse relevante, então não haveria tantas pessoas “feias” namorando ou casando com “bonitas”, tampouco mantendo tais relacionamentos até o fim da vida e durante a inevitável decrepitude física do tempo. Logo, ainda que listas como essas tendam a exaltar características físicas padronizadas de acordo com os costumes da época, elas, de modo algum, são capazes de, por si só, eliminar toda a beleza das pessoas, pois o que as torna belas vai muito além de sua aparência específica de um momento da vida.

Acontece que nem todos ou todas têm a maturidade para compreender e internalizar essa visão que certamente é a correta e racional, ainda mais quando estão na adolescência e no período escolar, cujo universo de experiências de vida e de visão de mundo é extremamente limitado. Assim, muitos, especialmente as meninas, acabam sofrendo, seja por meio de eventuais provocações por aquelas que constam em tais listas, seja por se sentirem menosprezadas pelos meninos por terem sido esquecidas. Olhando-se no espelho, elas podem vir a se questionar sobre o que seria necessário para serem mais atraentes. Inicia-se, assim, uma busca por vezes tomada por paz, por muitas outras por angústia, pela padronização da beleza, e caso os resultados esperados não sejam obtidos, vêm o sofrimento e a frustração em doses muito maiores do que os sentidos ao não verem seus nomes no ranking escolar de beleza. A pergunta a se fazer, aqui, é: a culpa por esses sentimentos é desses “listões”? Eis o cerne dessa reflexão.

Precisei de três tentativas e um “gap year” para conseguir êxito na minha aprovação em Direito na UFRGS. Nas duas primeiras, meu nome não constava no listão de aprovados e sofri. Senti-me inferior, afinal, eu não estava na tal lista. Embora eu tenha conseguido entrar quando da minha derradeira tentativa, tal frustração se repetiu em diversos momentos tempos depois ao tentar aprovação em concursos públicos, e o sentimento de fracasso sempre vem, sempre virá. A diferença é que, com o tempo, aprendemos a encarar as frustrações com maturidade e naturalidade, e também a relativizá-las. Usei esses exemplos que nada têm a ver com beleza justamente para demonstrar que, muito além dos rankings sobre atributos físicos e pessoais, há outros diversos na vida, e a maioria absoluta ficará de fora de grande parte deles. Entretanto, ficar de fora da lista de aprovados do vestibular ou de um concurso público não reduz as pessoas a fracassadas, mas revelam, apenas que, por motivos subjetivos e objetivos, elas ficaram de fora de uma lista que exigia uma padronização para sua pontuação e, ao final, aprovação. Às vezes sequer há um “listão”, mas tão somente uma escolha, como no caso de uma empresa que está fazendo uma seleção: ela escolherá com base em critérios objetivos e subjetivos, e alguém, muitos, ou quase todos ficarão de fora, pois o(s) escolhido(s) terá(ão) se sobressaído, justa ou injustamente. Faz parte da vida.

Portanto, quando vejo manifestações como essa realizada no Colégio Anchieta alguns dias atrás, ainda que seja legítima alguma reflexão sobre “objetificação da mulher” (lembrando que elas também fazem rankings semelhantes em relaçãos aos homens – ao menos na minha época faziam) ou machismo, bem como seja interessante a ideia de exaltar as características positivas de todas as meninas do 3º Ano do Ensino Médio da referida instituição, fico um pouco preocupado. Percebo o medo da frustração. Medo por não constar em alguma lista, o medo por se encontrar fora de alguma padronização, o medo de encarar, em algum grau, em algum critério, ainda que estúpido, irrelevante e sem sentido, alguma competição, cujas regras não obedecem às nossas expectativas ou se revelam incapazes de serem seguidas por determinadas pessoas.

Assim é a vida: um conjunto de listões que invariavelmente envolverão determinados padrões que não se traduzem na verdade absoluta: padrões de competência física, intelectual, profissional. Ir mal em uma prova, ser reprovado em alguma matéria, ser demitido de um emprego ou quebrar um negócio não significa que a pessoa seja mentalmente incapaz ou absolutamente incompetente, mas que falhou, dentro de um determinado critério objetivo ou subjetivo, no atendimento a determinado padrão que foi subjetivamente criado ou que lhe é naturalmente demandado. O mesmo vale para qualquer “listão de beleza”, cuja ausência não significa, absolutamente, inexistir beleza na excluída ou no excluído, mas um desatendimento a um critério físico subjetivo e bobo. O fato é que devemos estar prontos para encarar a frustração por, justa ou injustamente, não constarmos em alguma lista. 

Por outro lado, precisamos estar em paz e valorizar nossas próprias virtudes, e sempre é bom ter alguém ao nosso lado para delas nos lembrar, como fizeram as alunas e seu “listão das guria” recheado de características positivas das estudantes, a fim de não sermos envenenados pelas frustrações da vida. Mesmo assim, o mundo não passa a mão em nossas cabeças e nem sempre valorizará nossas qualidades. Olhar-se no espelho e reconhecer o que temos de melhor é excelente e fundamental para reunirmos forças e seguirmos adiante, mas isso não eliminará as padronizações, justas ou injustas, necessárias ou inúteis, que o mundo apresenta e, por vezes, exige. 


Comentários

  1. Excelente reflexão! A geração atual, na sua maioria, não sabe lidar com frustrações. Temos que valorizar o potencial que cada um de nós possuímos. Muitas vezes estão fora do padrão e fora das " listas", mas isto não desmerece ninguém, conforme tu colocaste na tua análise. Mais uma vez, parabéns Renan pela fluência das tuas palavras. Beijo.

    ResponderExcluir
  2. Penso que para se viver uma vida onde a competição e o julgamento das pessoas se escancaram a cada momento importantíssimo é manter latente seu amor próprio bem equilibrado. Excelente texto

    ResponderExcluir
  3. Muito bom o comentário. Consegues expressar com clareza teu ponto de vista. Ponto de vista bastante equilibrado. Parabéns! Serias um excelente jornalista.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A HISTÓRIA DA MINHA VIDA #1: PRÓLOGO

Toda história tem um prólogo. Não é possível imaginarmos que qualquer fato tenha uma origem em si mesmo, sem nenhum motivo anterior. Nem mesmo o universo (e a sua história) vieram do nada: Deus deu o pontapé inicial, e apenas Ele, Deus, não tem uma razão externa para existir, pois é eterno e fora da natureza. Nossa história não começa no nascimento, mas vem de muito antes. Na verdade, seria possível dizer que, caso quiséssemos, sinceramente, elaborar um prólogo fiel de nossas vidas, seria preciso retornar à origem do universo. No entanto, por razões óbvias, se a ideia é criar alguma introdução para a nossa biografia (ou simples livro de memórias), então imagino que o melhor a fazer é limitá-la aos nossos pais, pois são nossas referências biológicas e sociais mais diretas. Minha vida, ou o projeto que se tornaria a minha vida, começou no dia em que meus pais se conheceram, pois ali se encontrava a grande e objetiva propulsão que resultaria, cerca de dez anos depois, no meu enc...

INSPIRAÇÃO, POR ONDE ANDAS?

Como já é possível perceber, estou há muito tempo sem escrever por aqui. Não é apenas por esse canal: eu realmente não mais tenho conseguido palavras para expressar, por meio de textos, meus pensamentos (e garanto que não são poucos!). É interessante que, falando, ou melhor, dialogando com alguém, eu consigo trazer à tona diversas reflexões sobre os mais variados assuntos, mas ultimamente tem sido um sacrifício transportá-las para o "papel".  Estou há poucos dias de férias e resolvi, com o fim de apenas entreter-me, acessar esse meu blog e conferir meus textos antigos. Fiquei impressionado. "Quem é esse que escreve tão bem?", perguntei-me. Sem falsa modéstia, tenho o dom da escrita, ou ao menos tinha, pois parece-me que tal dom "escapou-me pelos dedos", como se o teclado em que digito ou a folha sobre a qual passeia a caneta que venho a empunhar emanassem um sopro de desinspiração, esvaziando a minha mente. "Onde eu estava mesmo...?" é a pergun...

TIA NOECI, HENRIQUE E EU

  Enquanto eu e o Henrique almoçávamos assistindo ao Chaves e ao Chapolin, lá estavas tu, convencendo o meu irmão a, para a comida, dizer “sim”, antes que eu desse cabo aos restos a serem deixados por ele que, diante de uma colher de arroz e feijão, insistia em falar “não”. Enquanto eu e o Henrique estávamos na escola, durante a manhã, na época do Mãe de Deus, tu arrumavas a bagunça do nosso quarto, preparando-o para ser desarrumado outra vez. Então, quando desembarcávamos da Kombi do Ademir, tu, não sem antes sorrir, nos recebias cheia de carinho e atenção, e dava aquele abraço caloroso que transmitia o que havia no teu coração. Enquanto eu e o Henrique, em tenra idade escolar, tínhamos dificuldades nos deveres de casa, tu estavas lá, nos ajudando a ler, escrever e contar, pois, embora a humildade seja tua maior virtude, ela era muito menor do que tua doação. Sabias que, em breve, não mais conseguirias fazê-lo, mas, até lá, com zelo, estenderias tuas mãos. Enquanto eu e o Henri...