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DA MORTE PARA A VIDA

 


Em 1998, meu avô Roberto Jeolás Machado Guimarães faleceu. Ao olhar para aquele ano, enxergo apenas um céu cinzento. Não me recordo de calor, de sol, do azul, mas apenas do cinza invernal que deu o tom daqueles meses de julho, agosto e setembro. Foi a primeira vez que vi meu pai,
Paulo Renato M Guimarães
, chorar. “O papai tá indo”, disse ele, nos ombros da minha mãe, em um dia terrível, na sacada gelada do quarto do Hospital Moinhos de Vento.

Em setembro, ele partiu e, por incrível que pareça, recordo-me que, no dia do seu enterro, o céu, apesar de parcialmente nublado, no entardecer, perto do horário do sepultamento, permitiu que o sol acalentasse nossas almas tomadas pela dor da despedida. Mas a dor, apesar de não mais aguda, permaneceu, como uma ferida que não cicatriza totalmente.

A vida seguiu adiante, e em meados de 1999, enquanto dirigia ao lado de seu sócio,
João Manuel Linck Feijó
, meu pai precisou estacionar o carro, tomado por uma crise de choro. Foi quando João o convidou para ir a sua igreja, a paróquia São Mateus, no Bairro Tristeza, em Porto Alegre. Meu pai nada disse, mas, “clandestinamente”, passou a frequentar aquele local abençoado, em cujo púlpito o Pastor
Douglas Wehmuth
transmitia a Palavra. Ele foi a um culto, depois a outro, e outro, nunca dizendo para ninguém, sempre lá, escondido, até que um dia resolveu responder à pergunta sempre feita sobre quem estava lá pela primeira vez. Foi quando ele nos revelou que estava indo a uma “igreja evangélica”.

A cada domingo, meu pai retornava para casa mais maravilhado. Eu, minha mãe e meu irmão, preconceituosos com a ideia, ouvíamos quando ele falava com frequência que o culto havia sido para ele, “na mosca”, e, aos poucos, nosso preconceito com a ideia de uma “igreja evangélica” foi se esvaindo. Primeiro foi a minha mãe,
Greta Cardia Eschiletti Machado Guimaraes
, e ela, rapidamente, passou a compartilhar os mesmos sentimentos de meu pai. Depois, em meados do ano 2000, fui eu. Lembro-me de me levantar quando perguntado sobre quem eram os visitantes do dia. Eu vestia uma camisa do Grêmio. Meu irmão
Henrique Guimaraes
foi o último a aceitar o convite.

Por cerca de dois anos, fui irregularmente à igreja. Para ser sincero, devo ter ido a meia dúzia de cultos, ou nem isso. Mesmo assim, não mais havia preconceito em relação à ideia. Nesse período, recordo-me de duas queridas amigas minhas,
Isabela Barbosa
e
Andrea GF
, terem compartilhado seus sentimentos após um retiro do qual participaram com sua igreja. Tive uma conversa com a minha ex-colega Anna Gabriela Arais, que defendeu algumas bases de sua fé de forma tão contundente e segura que me chamou a atenção. Pouco antes, o irmão da minha querida Suely Chiqueti, tio dos meus grandes amigos
Gustavo Chiqueti
, Rebeca e Renata, me disse, após um “debate teológico” (para a minha arrogante mente adolescente): “Renan, lê a Bíblia”. Na catequese, a semeadura de minha fé, a professora Maria Albertina, alguns anos antes, falou, quando meu irmão, ainda criança, disse que “o importante era acreditar em Jesus e já era”: “O importante é acreditar em Jesus e nas coisas que Jesus disse”.

Tudo isso ecoava em minha mente, ia e voltava, como vaga-lumes que me rodeavam silenciosamente e, vez que outra, brilhavam, lembrando-me de sua presença.

Nesse período, comecei a tocar bateria, meu irmão, violão, formamos nossa banda e iniciamos nossa “jornada” no mundo do rock. Foi quando meu pai teve a sua grande sacada.

Um dia, em meados de 2002, meu pai comentou que ele e João estavam patrocinando a gravação de um CD da banda de rock gospel
Banda Castelo Forte
e o seu lançamento em um show no Bar Opinião. Não dei muita bola para aquilo. Achei interessante, mas não me empolguei tanto. Não sabia que meu pai e seu sócio, talvez na época financeiramente mais difícil de sua sociedade, fizeram aquele sacrifício no cheque-especial, com direito à construção de um estúdio na própria igreja.

Fiquei sabendo que, em razão da construção do estúdio, o piano mais antigo seria levado para lá, enquanto um novo seria doado para o templo. Fui “convidado” pelo meu pai para ajudar na mudança e, literalmente, carregar um piano. Eram vários jovens na casa do Nestor Mentz, entre eles aqueles que viriam a ser grandes amigos,
Daniel Schild
e Thomás Pires. Feita a mudança, fizemos um sonzinho no templo, já que Daniel e Thomás tocavam guitarra. A palinha foi “Have you ever seen the rain”.

Nesse contexto, meu pai passou a bancar aulas de bateria para mim lá na igreja, no “estúdio”, com o então baterista da
Banda Castelo Forte
,
Eliasfrenzeloficial
(posteriormente, baterista da banda Reação em Cadeia), que tinha a minha idade, mais ou menos, e já era um monstro. Foram poucas aulas, talvez uma meia dúzia, mas, mesmo assim, muito importantes.

Algumas semanas depois, eu, meu irmão e meu pai fomos ao tal do show no Opinião. Eu quase não fui, pois tinha uma prova de matemática no dia seguinte, mas imaginei que Deus me ajudaria no teste por esse sacrifício. Valeu a pena. Foi demais, com direito a “roda punk” durante a música “Ressuscitou” que culminou em uma séria lesão no tornozelo do Daniel (ah, esses adolescentes mangolões....). Então, naquela noite, veio o convite feito pelo Daniel e reforçado pelo
Elias Wehmuth
, filho do pastor Douglas: um retiro com jovens no próximo final de semana. Gostei da ideia. Fui.

No sábado seguinte, bem cedo, lá estava eu, em frente a igreja. Meu pai me alcançou um presente: minha primeira Bíblia. Embora em quase estado de decomposição em razão de seu frequente e intenso manuseio, a tenho até hoje, e, nela, há uma dedicatória do pastor Douglas: “Renan, não existe livro mais fascinante do que este. Faça o teste!”.

Fiz.

Sendo sincero, sentia-me bem com a ideia da igreja e tal, mas o que me atraía para lá era a possibilidade de encontrar mais uma turminha legal. Deus nos conduz por caminhos misteriosos.

O local era um sítio em Viamão que pertencia ao Colégio Farroupilha. Era um lugar bem bonito. Durante o dia, fizemos uma gincana, e o querido Eldomar Greinke, o Lipy (marido da querida
Patrícia Greinke
, ambos fundamentais para a minha caminhada), que conheci naquele fim de semana, leu, em uma etapa da brincadeira, o famoso versículo 20 de Apocalipse, capítulo 3: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo”. Não entendi bulhufas, mas era exatamente isso que Jesus estava fazendo: batendo na porta da minha alma, cabendo apenas a mim, e a mais ninguém, abri-la e convidar o Senhor para uma boa refeição.

Naquela noite, veio o pastor Douglas. Ele trouxe um testemunho da sua vida, relatou quando aceitou a Cristo e, subitamente, entendi o que estava acontecendo. Não vou mentir e dizer que compreendia a dimensão do que estava em jogo, mas senti que, naquele momento, era necessário apenas uma coisa: humildade.

Então, Douglas puxou uma oração. Fechamos os olhos. E ele disse: “Quem quiser que Jesus entre na sua vida, que Ele entre em seu coração, peça.” E eu pedi.

Como uma neblina que aos poucos se dissipa, comecei a enxergar o que não via, e entendi o significado da famosa canção “Amazing Grace”: “I was blind, but now I see” (“eu estava cego, mas, agora, enxergo”). Isso não se deu naquela noite, nem naquela semana, mas nos meses que se seguiram. Foi bem como disse o versículo: não compreendi a Palavra quando vi Jesus na minha porta, mas a venho entendendo durante a longa refeição que temos compartilhado desde então.

Minha resistência foi quebrada e, de coração aberto, passei a assimilar com facilidade a Bíblia, uma assimilação que só terminará na eternidade, e olhe lá. Algo que não nos torna totalmente donos da verdade, longe disso, mas que nos aproxima dela como nada mais no mundo.

Tudo mudou a partir de então e passei a compreender, gradualmente, toda a empolgação e a esperança trazida pelo meu pai a cada domingo e que, depois, contagiou a minha mãe e viria a fazer o mesmo com meu irmão. Eu não sabia, mas, antes, eu estava morto, e aquela alegria genuína baseada na certeza de que Deus, mesmo na pior das aflições, sempre está e estará conosco é insuperável e é o que de fato nos traz a vida verdadeira, abundante e eterna.

Passei a frequentar o então grupo jovens da igreja, os Gansos, e fiz amizades preciosas, para a vida toda. Pessoas diferentes, mas unidas pela fé em comum. E nada é mais forte e tem mais poder do que a fé em comum. Como disse Jesus, é a rocha em que se firma a casa de nossas vidas.

Pouco depois, compartilhei a minha fé com a
Roberta Araújo
. Foram dois anos, entre conversas, idas e vindas. E, depois, passados outros tantos anos, a Roberta o fez com a sua família, especialmente com minha sogra,
Cristina Silva
, e meu sogro,
Paulo Forte
, e eles, também, com o tempo, passaram a ser vetores da Palavra de Deus, que segue se espalhando, firme e forte.

Para a minha vida e daqueles ao meu redor, tudo começou naquele convite discreto do João Manuel para o meu pai, num momento de muita dor, aflição, desamparo e desesperança. Deus agiu. Ele sempre age.

Não importam as circunstâncias. Tudo passa, tudo passará, mas a Palavra de Deus sempre permanecerá a postos para transformar nossas vidas e dotá-las de um sentido genuíno, eterno e imune a qualquer coisa. Jesus está sempre disposto a entrar nas nossas vidas, mas nunca vai pedalar as portas dos nossos corações, mas nelas baterá, na expectativa de ser nosso convidado. Depois, é só deixar Ele falar que tudo acontece e, da morte, somos levados para a vida: a vida eterna que começa aqui e nunca termina, sempre soprada pelos ventos da Maravilhosa Graça.

Como recomendou o querido pastor
Douglas Wehmuth
: "FAÇA O TESTE!"




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