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CRÔNICA DO PRIMEIRO NASCIMENTO

 


Era para ser um parto natural. Tudo foi planejado para ser assim, mas havia uma pequena coisa que ameaçava essa ideia inicial: uma certa restrição de crescimento.

 A gravidez da Glória foi tranquila, sem riscos, mas o tal do seu percentil indicava que ela crescia muito menos do que o normal. Todos os seus demais índices apontavam que nossa bebezinha se mostrava saudável, mas seu tamanho era muito menor do que a média para a idade gestacional. Assim, não era seguro aguardar pela natureza. Seria preciso agir um pouco antes, a fim de evitar riscos. Teria sido uma decisão correta? Digamos que foi prudente, conforme indicavam as ecografias semanais que fazíamos.

 Assim, agendamos a internação, mas não, necessariamente, o parto. Tentaríamos induzi-lo para que se desse de forma natural. Chegamos ao Hospital Moinhos de Vento pela manhã, em torno das 9 horas. No caminho, avisamos nossas famílias, mas deixamos claro que o parto dificilmente aconteceria rapidamente. Mesmo assim, meus pais, irmão, cunhada e afilhado (que, na época, tinha só quatro meses) foram correndo para lá, como se nossa filha estivesse escorregando para a luz feito uma criança em um toboágua. A família da minha esposa também para lá se dirigiu, mas o fez apenas depois do almoço.

 Realizada a internação, ficamos no centro obstétrico em um quarto isolado e recebendo um tratamento de primeira. Sério, me senti importante naquele dia! Como é bom ter um ótimo plano de saúde (algo que “não me pertence mais”, como o chavão daquele velho quadro do “Zorra Total”). Além disso, a Roberta trabalhava lá, conhecia a equipe, então todos os cuidados tinham um afeto pessoal. Sentíamos em casa.

 O dia estava tranquilo até que o tal remedinho da indução começou a fazer efeito e as dores do parto enfim chegaram até a Roberta. Eram 15 horas, aproximadamente. Às 18, as dores já eram insuportáveis. Roberta chorava e não havia trégua: entre uma contração e outra, um intervalinho de 30 segundos de alívio e deu. A obstetra chegou mais ou menos nesse horário, e a dilatação não evoluía. Um mísero centímetro, a mesma coisa desde a internação. Roberta tomava banho quente, recebia massagens, sentava em posições indicadas para essa situação, mas apenas a dor que ela sentia evoluía. A dilatação era a mesma.

 De tempos em tempos eu atualizava a família, que aguardava ansiosamente no saguão do “aquário” do hospital, loucos para conhecerem logo a neta. Minha cunhada viera de São Paulo com meu sobrinho especialmente para esse momento e havia se unido à trupe. Família completa para receber a nossa primogênita, que, no entanto, parecia apenas se esticar dentro da minha esposa, sem ansiedade para sair.

 O tempo foi passando; a dor, aumentando; a dilatação, parada. Roberta se contorcia na cama, urrava feito um animal, e isso me fez lembrar que somos todos animais. E se ela urrava tal qual uma fera da natureza, eu não era diferente. Meu irmão, ao descrever momento parecido referente ao nascimento de meu afilhado, se lembrou do tempo do Ventoso e da Monga, o último casal de cães que tivemos e procriou. Enquanto Monga, sempre dócil mas, naquelas horas, arisca, se isolava para dar à luz, Ventoso ficava andando ao seu redor, de um lado para outro, ansioso, sem saber o que fazer. Era assim que eu me sentia: como o bom e velho Ventoso diante da imprevisível Monga.

 Mas a coisa ficaria ainda pior. Roberta passou da fase animal para a paranormal. Ao menos era assim aos meus olhos, pois ela parecia possuída. Sacudia assustadoramente os braços da cama hospitalar, e eu era tomado por um misto de sentimentos, pois, ao mesmo tempo em que me preocupava com seu estado, também não deixava de prever a nossa insolvência se elas viessem a quebrar. Parecia a menina do filme “O Exorcista”, e não estou brincando. Tentando acalmá-la, eu a chamava com afeto e dizia: “Calma, amor! Calma! Respira fundo! Olha para mim!”. Ao que ela respondia: “CALA A BOCAAAAA!”. E eu me recolhia ao meu estado de Ventoso, sem saber o que fazer.

 Diante daquele quadro, a obstetra pediu para ficar uns instantes sozinha com a Roberta. Eu saí e fui atualizar pessoalmente a família, que não sei como aguentou ficar o dia inteiro naquele saguão. O Martin, meu sobrinho de São Paulo, tinha, na época, quatro anos. Como ele conseguiu ficar por tantas horas lá? E meu afilhado Francisco, com quatro meses? Meus pais, a mãe da Roberta, seu padrasto, enfim, todos estavam ansiosos por notícias e pelo nascimento. O sol já descansava no horizonte, a noite caíra, e nada do parto.

 Voltei para a Roberta e a obstetra, que segurava a sua mão com ternura. Roberta disse que tentaria aguentar mais um pouco, e eu a apoiaria, apesar do cenário de desconforto. A médica nos deixou a sós e o ciclo de dor prosseguiu. Até que, perto das 21h, minha esposa “pediu penico”. Liguei para a anestesista com quem havia combinado tudo, mas ela não atendeu ao telefonema! Sério, não me recordo de seu nome, mas até hoje não sei o que ela fazia naquela sexta-feira à noite, e nem quero saber. Minha única certeza é que ela nos deixou na mão. Avisei a obstetra e ela imediatamente contatou o seu anestesista de confiança, um inglês sempre a postos para exercer o seu ofício. Era ele chegar que, enfim, teríamos o parto.

 Equipe de filmagens e fotos a postos, anestesista, obstetra, pediatra, todo mundo engatilhado para trazer ao mundo a nossa primeira princesa. Sim, primeira, pois não sabíamos que Deus seria ainda mais bondoso conosco e nos presentearia, anos depois, com outra.

 Roberta foi levada para a sala do parto. As câmeras registraram seu desconforto. Agarrava-se aos braços da cama hospitalar como se nelas houvesse algum refúgio para a sua dor.

 E eu fiquei ali, sentado, à espera do momento exato para ser chamado. Ele não demorou. Foram cinco ou dez minutos. Minha esposa sorria como se estivesse no paraíso. Um olhar de alívio e amor. A cesariana estava em andamento, e ela dizia: “Que engraçado! Estão mexendo na minha barriga!”. E ela ria, numa mistura de êxtase, alegria natural e só um pouquinho de bom torpor pela anestesia.

 Então, às 22h19min do dia 23 de março de 2018, ela veio ao mundo, a nossa primogênita, nossa princesinha número um. Glória, nossa filha amada. Eu fui o primeiro a cruzar com seu olhar. Ela saiu da barriga da Roberta com braços abertos, louca para abraçar, e era a cara da mãe. Ainda é. Nasceu cabeluda. Ei-la, então, nossa continuidade, nossa herança, nosso legado. Acima de tudo, o primeiro fruto do meu amor e da Roberta, o primeiro ser feito de nós dois e com os laços amarrados por Deus.

 Hoje faz quatro anos daquele dia e não canso de agradecer a Deus pela vida da Glória. Nem nos melhores sonhos imaginávamos que teríamos uma filha tão maravilhosa que, hoje, tem se revelado uma carinhosa e fora de sperie irmã mais velha para a Amélia, nossa princesinha caçula nascida também em um dia 23, mas de outubro de 2021.

 Filha amada, o papai e a mamãe te amam muito, te amam para sempre, e podes ter certeza de que sempre estaremos contigo! Como te digo todas as noites antes de dormir, que Deus te abençoe muito, te ilumine e te proteja! Que tu tenhas uma vida longa, próspera, segura, saudável e feliz, e que tu nunca de desvies dos caminhos de Deus!

 Feliz aniversário, filha!

 


 



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