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Incoerência Coerente

O lançamento do PSD (Partido Social Democrático) ocorrido hoje levanta uma questão: para que lado ele penderá? Direita ou esquerda? Seus representantes dizem que nem um, nem outro: será de centro. Mas, afinal, o que é um partido de centro?

Alguns dirão que um partido de "centro" é justo e razoável, ou seja, não se prende a raízes ideológicas capazes de brecar o desenvolvimento e a justiça sócio-econômica e ambiental do país. O que for melhor para a nação receberá apoio do partido de centro, portanto. Da mesma forma, aquilo que irá contra o recomendável para o Estado, sob uma ótica clínica isenta de preconceitos, sofrerá a devida resistência.

Outros afirmarão, por sua vez, que um partido de "centro" é argumento para um fisiologismo institucionalizado e assumido. "Se for do interesse do partido, tá valendo". Trata-se de uma deturpação do primeiro argumento, da "isenção", pois a pergunta que vem é: que interesse do partido? Sem uma bandeira, uma raiz, não há ideias comuns e o partido, assim, estará condenado, já no seu nascimento, à fragmentação ideológica que apenas servirá para enfraquecer, gradualmente, a legenda.

Embora eu entenda que as ideologias políticas não possam cegar os interesses do país, suas necessidades e os clamores do povo, deve haver um liame mínimo com algum princípio norteador, para que indique os pontos de vista a serem defendidos e capaz de limitar, minimamente, a orgia do poder, em que vale tudo para alcançá-lo.

Um partido assumidamente de centro é, também, assumidamente vazio ideologicamente, sem valores e princípios que possam dirigi-lo de maneira objetiva nas andanças da política, sendo, assim, incapaz de ordenar e conduzir seus filiados e eleitores de modo claro. A velha pergunta "o que queremos?" não é plenamente respondida. O argumento de que um partido de centro será isento e votará pelo melhor é pura ilusão, pois sequer sabemos para onde se inclina esse "melhor".

Cabe lembrar, ainda, que no manifesto de lançamento do partido se defende a formação de uma nova Constituinte. Todavia, toda e qualquer Constituição tem influências ideológicas, sejam elas quais forem, e por menores que sejam. Portanto, podemos dizer que o PSD já nasce incoerente, pois é de centro, ou seja, sem uma tendência ideológica assumida, mas defende o melhor para o país, seja qual for esse suposto melhor.

Contudo, a incoerência do PSD é coerente com o atual estágio de desenvolvimento da política brasileira. Vivemos numa era em que muitos partidos do país, que ostentam bandeiras ideológicas, afundam cada vez mais sob o fisiologismo dos seus interesses (o PMDB não tem união alguma entre suas lideranças regionais e nacionais, estando presente em todos os governos brasileiros, desde a redemocratização; o PV libera seus representantes para defenderem quem quiser; e o PTB, PDT e o PP ora pendem para um lado "social", ora para um lado "econômico", além de outros exemplos), enquanto outros são soterrados pela inflexibilidade decorrente de uma arraigação principiológica extrema (caso do PSTU, PCO, PSOL, dentre outros), enquanto há aqueles que, no poder, são flexíveis com seus valores, mas na oposição, defendem seus pontos de vista como se fossem religiosos (caso do PSDB, DEM e PT, seja na oposição, seja na situação). Dessa maneira, nada menos surpreendente que um partido assuma essa ausência de valores e princípios como seus valores e princípios.

O relativismo que serve de bandeira para o PSD é o mesmo que conduz o mundo ocidental contemporâneo. Nossos principais partidos surgiram em épocas em que determinadas filosofias e ideologias estavam em voga pelo globo: o PTB original (pai do atual PTB e do PDT) veio na esteira do trabalhismo dos anos 30; o PC do B, o PCB e o PSB, além, claro, do PT, vieram dos movimentos sindicais socialistas das décadas de 1940 a 1970, passando pela de 1980; o PV veio da onda verde que estourou no final dos anos 70 e se desenvolveu no país nos anos 1980; o PMDB, da resistência legal à ditadura, nos anos 70; o PSDB e o DEM (antes PFL), como reflexo da onda neoliberal dos anos 1980. O PSD não é diferente: representa o pensamento de um tempo: o relativismo e o fisiologismo para adequar-se ao poder.

Portanto, o PSD, que já foi concebido programado para ser incoerente na política brasileira, visto que nasceu para assumidamente defender qualquer coisa que "entender o melhor para o Brasil", é incrivelmente coerente, pois veste, sem pudor, a camiseta do tempo vazio e relativista em que vivemos, no qual o vale-tudo pelo poder, sucesso e prazer são o norte da nossa bússola burra.

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