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A HISTÓRIA DA MINHA VIDA #3: VÔ PADRINHO


Passadas algumas breves histórias curtas de fontes externas à minha memória, enfim escrevo sobre minhas primeiras lembranças, sobre as quais confesso não ser capaz de, plenamente, organizá-las de maneira cronológica. Talvez eu falhe um pouco nesse quesito, mas o importante é colocar tais recordações no papel.

As lembranças mais antigas que tenho remontam ao Vô Padrinho. Já morávamos na casa que ele dera aos meus pais (na verdade, parte do valor da casa foi adquirida com o dinheiro da venda do terreno de Niterói, enquanto outra veio da quantia proveniente da comercialização de um apartamento do velho “dindo” da minha mãe). Ela ficava no bairro Ipanema, Rua Otelo Rosa, pouco mais do que duas quadras de distância do Lago Guaíba (na época, era chamado de Rio Guaíba, embora, academicamente, fosse considerado um estuário).

A casa era térrea, mas bem espaçosa. Possuía duas construções, uma na parte da frente e outra nos fundos. A principal, da frente, tinha três quartos, dois banheiros, sala e cozinha. Nos fundos, ficava a churrasqueira, outro banheiro, área de serviço e mais um quarto. Entre as duas edificações havia uma piscina e uma verdadeira pracinha (playground, parquinho) que meus pais foram instalando aos poucos, com escorregador, balanço, gangorra e outros brinquedos que tornaram a minha infância muito privilegiada. Havia muitas árvores frutíferas, em especial uma amoreira, uma parreira, uma bananeira e uma goiabeira, e a entrada daquele lar era enfeitada por um grande bougainville. Vivemos lá por quase dez anos, os quais, para mim, pareceram muito mais, considerando a época em que lá estava.

Todos os quartos da casa, além do corredor, eram encarpetados (o que não era muito bom, considerando que a umidade do lugar deixava o carpete sempre molhado), mas suficientemente espaçosos. O cômodo dos meus pais era uma suíte, e o meu (que também viria a ser do meu irmão) dava para os fundos, no caso, a pracinha e a piscina. A janela do outro quarto dava para um espaço usado para ficar um botijão de gás, semelhante a um poço de luz. Era nesse terceiro quarto onde dormia o Vô Padrinho.

A sala era dividida em dois ambientes, estar e jantar, e Vô Padrinho sentava em uma das pontas da mesa, de costas para a grande janela da sala, no lado oposto ao meu pai.

Vô Padrinho nunca chegou a ser um fardo aos meus pais. Na verdade, eles não morariam com ele, mas apenas próximo a ele, ou seja, em Porto Alegre, simplesmente. A iniciativa de morarem juntos foi dos meus pais, mesmo. O problema era que o velhinho viúvo era danado, e gostava de uma vida de “diversões” com algumas “acompanhantes”, que acabavam lhe tirando alguns bons tostões. Além disso, havia uma doceira que lhe empurrava encomendas forjadas, sendo que sempre parecia dia de festa em seu apartamento. Assim, diante dessas situações, ele enfim acabou convencido pelos meus pais a viver com eles.

Enfim, minhas lembranças mais remotas são do Vô Padrinho. Em razão da minha idade, não consigo lembrar detalhes ou histórias, mas simplesmente do seu convívio e de pequenas coisas, como a mencionada posição na mesa. De todo modo, especificamente, a recordação mais clara que tenho é a seguinte: pela manhã, eu acordava e ia até o seu quarto chamá-lo para brincar. Ele, obviamente, era acordado por mim e, com preguiça de levantar, chamava-me para deitar consigo por mais uns minutos. Lembro-me cantando a música “Ilariê”, da Xuxa, com ele, mas enquanto o certo era “ilari-ilariê ô, ô, ô”, ele insistia em pronunciar “ ilari-ilariê ré, ré, ré”, só para implicar.

Também lembro o dia em que ele faleceu, embora de maneira confusa e um tanto desconexa. Recordo-me de estar sentado no chão, sobre o tapete de pelego da sala de estar, assistindo à televisão (era uma versão da Disney da fábula “João e o Pé de Feijão”, com Mickey, Pateta e outros personagens clássicos) enquanto meus pais, perturbados com o estado de saúde do Vô Padrinho, mexiam-se para levá-lo ao hospital. Também guardei a imagem do meu pai saindo de casa com o velhinho nos braços, desacordado (ou quase desacordado).

Em relação à morte do Vô Padrinho, não presenciei alguns fatos, mas vale a pena relatá-los. O primeiro deles é a sua despedida ao meu irmão, que, na época, tinha em torno de dois anos idade (eu tinha quatro, mais ou menos). Ele, acometido por uma violenta pneumonia, lhe dizia: “o vovô tá indo”, e Henrique, meu irmão, lhe observava com os olhos arregalados.

A outra história é tragicômica. Como já lhes disse, meu pai saiu de casa às pressas com Vô Padrinho, já desacordado, no colo. Colocou-o no carro, no banco do carona, e arrancou. O corpo mole e desfalecido ficava caindo por cima do meu pai, em uma cena que deve ter sido muito semelhante às do filme “Um Morto Muito Louco”. Para piorar, meu pai percebeu que havia esquecido a carteira. Considerando que seria um risco muito grande ser parado sem documentos em uma blitz com uma pessoa que poderia estar morta, deu meia volta e retornou à casa. Apesar de todo o esforço, Vô Padrinho viria a falecer.
Encarei a perda daquele velhinho tão importante para mim e à minha família com a tristeza e serenidade de uma criança. Lembro-me do meu primeiro dia na creche depois da morte do Vô Padrinho. A professora abriu a porta para eu entrar, perguntou como eu estava e lhe respondi: “meu vô morreu...”.

Meu avô padrinho faleceu em 1989, tendo convivido com os meus pais, portanto, por cerca de cinco anos e, comigo, em torno de quatro. Acho incrível o fato de os meus pais terem, tão jovens, encarado um desafio que para muitos “marmanjos” é um tabu: cuidar de um velhinho. Evidentemente que houve o apoio relacionado à casa, mas, mesmo assim, não seria fácil. Além disso, ainda hoje quando questiono especialmente o meu pai sobre essa fase da vida, ele me diz: “pois é, olhando para trás parece ter sido complicado, mas o Padrinho era uma pessoa sensacional, completamente lúcida e muito agradável...”.

Como já lhes disse, Vô Padrinho não teve filhos, mas partiu dessa para uma melhor rodeado por dois que assim passou a considerar, além, é claro, de outros dois gurizinhos que via como netos.

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