Recentemente terminei de ler a trilogia "Crônicas de Artur", do britânico Bernard Cornwell, o qual é considerado um dos melhores romancistas no gênero "medieval" da atualidade (embora suas ficções não se limitem a tal período da História).
A saga é, sem sombra de dúvidas, uma das melhores que li, graças ao talento nato do escritor na sua narrativa em primeira pessoa (como o personagem Derfel Cadarn, um dos "Cavaleiros da Távola Redonda"), o que nos transporta para a época sob os pontos de vista de então, e a espetacular ambientação das lendas arturianas dentro de uma, embora evidentemente ficcional, possível realidade histórica. Cornwell baseou-se em achados arqueológicos, registros da época, além de outras fontes seguras para retratar da maneira mais fiel possível o pano de fundo da versão da lenda do "Rei" Artur (sim, "rei" entre aspas, pois o famoso portador de Excalibur nunca teria sido rei, mas esse detalhe deixo para os futuros leitores da saga).
Minha intenção, no entanto, não é mergulhar em "Crônicas de Artur", mas de destacar um dos aspectos históricos trazidos à tona nesta obra e capaz de nos conduzir a profundas reflexões. Todos que já leram sobre Artur sabem quem foi o seu inimigo final: Mordred. Mordred, na obra de Cornwell, é retratado como o legítimo herdeiro do trono da Dumnonia, um poderoso e respeitado reino britânico, mas nem era nascido quando seu pai tombou em uma batalha, e ainda era um bebê quando seu avô, Uther Pendragon, faleceu. Assim, Artur, um nobre, respeitado e imponente cavaleiro e suserano de um verdadeiro exército de vassalos igualmente montados, bem armados e treinados, filho bastardo de Uther e tio de Mordred, jurou proteger o piá e seu reino até que o guri alcançasse a maioridade. Praticamente todos os acontecimentos da saga decorrem deste mal-fadado juramento.
E essa é a questão que vale destacar: o juramento.
Enquanto Mordred crescia, todos viam que o fedelho seria problemático, um verdadeiro "anjo malvado" (como aquele interpretado por Macaulay Culkin), o típico psicopata mirim. Quando o rapaz estava em vias de deixar a adolescência e se tornar adulto e apto a governar, Artur é questionado sobre a razão de não ter matado Mordred, ou mandado-o para o exílio a fim de derrubá-lo do trono, uma vez que o mais famoso herói medieval era o verdadeiro líder, aquele que de fato merecia a coroa e era capaz de unir e conduzir a Britânia. Como resposta, alegava simplesmente que fizera um juramento e deveria cumpri-lo.
A justificativa para que Artur respeitasse tanto o tal do "juramento" foi dada pelo próprio cavaleiro: os juramentos precisam ser respeitados, pois, caso contrário, ninguém o fará, ele sempre será relativizado e o caos será instaurado. Cornwell escreve, usando o personagem de Artur, que se Mordred fosse derrubado, ainda que o empunhador de Excalibur fosse infinitamente mais justo e apto, nada impediria outros de tentar o mesmo, afinal, sempre haveria alguém para se considerar mais justo e apto.
E é aí que entre o STF, o Supremo Tribunal Federal brasileiro. Os seus ilustres ministros estão totalmente divididos sobre o que fazer em relação aos deputados federais criminalmente condenados no processo do Mensalão: deverão perder o mandato imediatamente após o trânsito em julgado da sentença condenatória, por decisão do próprio Supremo, ou esta tarefa caberá à própria Câmara dos Deputados?
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), promulgada no ano de 1988, é o juramento feito pelo povo brasileiro, por meio de seus representantes, em relação a tudo de sua nação e fora dela. Sim, trata-se de um juramento. As Emendas Constitucionais, as quais têm gradualmente modificado o texto original, são igualmente legítimas (embora nem sempre morais, mas este julgamento é evidentemente subjetivo), afinal, quem as faz são os representantes do povo. O STF, no entanto, tem a prática de realizar a chamada "mutação constitucional" que é, nada mais, nada menos, dar novo sentido a um texto, sem modificá-lo literalmente, por meio do que se chama de "interpretação sistemática", ou seja, os dispositivos constitucionais permanecem, mas seus significados são alterados à luz de princípios, garantias e direitos fundamentais previstos na Carta Magna brasileira.
Diz o texto constitucional:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
(...)
VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
(...) § 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decididida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
Tenho vontade de vomitar quando penso no Mensalão, assim como em qualquer outro caso de corrupção. Trata-se da maior e pior chaga brasileira, e aqueles que a implementam deveriam ser punidos com as mais severas penas, ainda mais no caso de políticos, eleitos pelo povo para representá-los com honestidade. No entanto, existem os "juramentos" e, no nosso caso, o "juramento constitucional", gravado com letras claras e expressas sobre o que deverá acontecer com aqueles safados, os "Mordreds" brasileiros: o julgamento pelos seus pares parlamentares,ou seja, pelos demais deputados federais, de acordo com o caso.
Eu, humanamente falando, gostaria que os condenados fossem imediatamente exilados na lua ou no núcleo do Sol, mas há um juramento, uma Constituição no caminho e ela precisa ser respeitada. Evidentemente que a interpretação, no caso de o STF decidir em sentido diverso do expressamente previsto na CRFB, será plausível e amplamente motivada, mas na minha humildade opinião, dizer que 2+2=5 tem limites. O texto diz que "a perda do mandato SERÁ DECIDIDA pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal". Onde está a margem para ver algo diferente disso?
A Constituição é o nosso juramento, e relativizá-lo da maneira como vem acontecendo é um convite para uma tirania velada, disfarçada de "democrática". Hoje, esses corruptos e merecedores de punições são as vítimas desta verdadeira "forçação de barra", mas e amanhã? Como disse o Artur de Cornwell, embora não com estas exatas palavras, os juramentos precisam ser respeitados pois, caso contrário, o justo será justo até que outro justo corte a sua cabeça por se considerar mais justo. E a vitória é do injusto.
A saga é, sem sombra de dúvidas, uma das melhores que li, graças ao talento nato do escritor na sua narrativa em primeira pessoa (como o personagem Derfel Cadarn, um dos "Cavaleiros da Távola Redonda"), o que nos transporta para a época sob os pontos de vista de então, e a espetacular ambientação das lendas arturianas dentro de uma, embora evidentemente ficcional, possível realidade histórica. Cornwell baseou-se em achados arqueológicos, registros da época, além de outras fontes seguras para retratar da maneira mais fiel possível o pano de fundo da versão da lenda do "Rei" Artur (sim, "rei" entre aspas, pois o famoso portador de Excalibur nunca teria sido rei, mas esse detalhe deixo para os futuros leitores da saga).
Minha intenção, no entanto, não é mergulhar em "Crônicas de Artur", mas de destacar um dos aspectos históricos trazidos à tona nesta obra e capaz de nos conduzir a profundas reflexões. Todos que já leram sobre Artur sabem quem foi o seu inimigo final: Mordred. Mordred, na obra de Cornwell, é retratado como o legítimo herdeiro do trono da Dumnonia, um poderoso e respeitado reino britânico, mas nem era nascido quando seu pai tombou em uma batalha, e ainda era um bebê quando seu avô, Uther Pendragon, faleceu. Assim, Artur, um nobre, respeitado e imponente cavaleiro e suserano de um verdadeiro exército de vassalos igualmente montados, bem armados e treinados, filho bastardo de Uther e tio de Mordred, jurou proteger o piá e seu reino até que o guri alcançasse a maioridade. Praticamente todos os acontecimentos da saga decorrem deste mal-fadado juramento.
E essa é a questão que vale destacar: o juramento.
Enquanto Mordred crescia, todos viam que o fedelho seria problemático, um verdadeiro "anjo malvado" (como aquele interpretado por Macaulay Culkin), o típico psicopata mirim. Quando o rapaz estava em vias de deixar a adolescência e se tornar adulto e apto a governar, Artur é questionado sobre a razão de não ter matado Mordred, ou mandado-o para o exílio a fim de derrubá-lo do trono, uma vez que o mais famoso herói medieval era o verdadeiro líder, aquele que de fato merecia a coroa e era capaz de unir e conduzir a Britânia. Como resposta, alegava simplesmente que fizera um juramento e deveria cumpri-lo.
A justificativa para que Artur respeitasse tanto o tal do "juramento" foi dada pelo próprio cavaleiro: os juramentos precisam ser respeitados, pois, caso contrário, ninguém o fará, ele sempre será relativizado e o caos será instaurado. Cornwell escreve, usando o personagem de Artur, que se Mordred fosse derrubado, ainda que o empunhador de Excalibur fosse infinitamente mais justo e apto, nada impediria outros de tentar o mesmo, afinal, sempre haveria alguém para se considerar mais justo e apto.
E é aí que entre o STF, o Supremo Tribunal Federal brasileiro. Os seus ilustres ministros estão totalmente divididos sobre o que fazer em relação aos deputados federais criminalmente condenados no processo do Mensalão: deverão perder o mandato imediatamente após o trânsito em julgado da sentença condenatória, por decisão do próprio Supremo, ou esta tarefa caberá à própria Câmara dos Deputados?
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), promulgada no ano de 1988, é o juramento feito pelo povo brasileiro, por meio de seus representantes, em relação a tudo de sua nação e fora dela. Sim, trata-se de um juramento. As Emendas Constitucionais, as quais têm gradualmente modificado o texto original, são igualmente legítimas (embora nem sempre morais, mas este julgamento é evidentemente subjetivo), afinal, quem as faz são os representantes do povo. O STF, no entanto, tem a prática de realizar a chamada "mutação constitucional" que é, nada mais, nada menos, dar novo sentido a um texto, sem modificá-lo literalmente, por meio do que se chama de "interpretação sistemática", ou seja, os dispositivos constitucionais permanecem, mas seus significados são alterados à luz de princípios, garantias e direitos fundamentais previstos na Carta Magna brasileira.
Diz o texto constitucional:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
(...)
VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
(...) § 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decididida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
Tenho vontade de vomitar quando penso no Mensalão, assim como em qualquer outro caso de corrupção. Trata-se da maior e pior chaga brasileira, e aqueles que a implementam deveriam ser punidos com as mais severas penas, ainda mais no caso de políticos, eleitos pelo povo para representá-los com honestidade. No entanto, existem os "juramentos" e, no nosso caso, o "juramento constitucional", gravado com letras claras e expressas sobre o que deverá acontecer com aqueles safados, os "Mordreds" brasileiros: o julgamento pelos seus pares parlamentares,ou seja, pelos demais deputados federais, de acordo com o caso.
Eu, humanamente falando, gostaria que os condenados fossem imediatamente exilados na lua ou no núcleo do Sol, mas há um juramento, uma Constituição no caminho e ela precisa ser respeitada. Evidentemente que a interpretação, no caso de o STF decidir em sentido diverso do expressamente previsto na CRFB, será plausível e amplamente motivada, mas na minha humildade opinião, dizer que 2+2=5 tem limites. O texto diz que "a perda do mandato SERÁ DECIDIDA pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal". Onde está a margem para ver algo diferente disso?
A Constituição é o nosso juramento, e relativizá-lo da maneira como vem acontecendo é um convite para uma tirania velada, disfarçada de "democrática". Hoje, esses corruptos e merecedores de punições são as vítimas desta verdadeira "forçação de barra", mas e amanhã? Como disse o Artur de Cornwell, embora não com estas exatas palavras, os juramentos precisam ser respeitados pois, caso contrário, o justo será justo até que outro justo corte a sua cabeça por se considerar mais justo. E a vitória é do injusto.
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