O despertador do
telefone celular insistia em tentar acordar Alberto Soares, cujos roncos eram
mais intensos do que os trovões daquela deprimente manhã chuvosa de
segunda-feira. Trinta minutos depois de ter ativado pela primeira vez o modo
“soneca” em seu aparelho, Soares cedeu e, enfim, acordou acompanhado por uma
violenta azia.
Olhou para o
lado oposto de sua cama e decepcionou-se ao constatar que ali não estava a
mulher formidável que o animara em seus sonhos, mas apenas a caixa de papelão
da pizza de doze queijos que havia devorado na noite anterior enquanto assistia
ao filme “Desejo de Matar”, estrelado por Charles Bronson, seu ator favorito.
Percebeu que havia um pedaço remanescente, àquela altura frio como a madrugada
daquele inverno. “Dane-se”, pensou, e antes que percebesse a barata que
caminhava em seu lençol, seus dentes amarelados por vinte anos ininterruptos de
ingestão de café já trituravam a fatia que tinha um sabor diferente daquele da
noite anterior.
Ainda sentado na
beira de sua cama, observou o quarto ao seu redor, parcamente iluminado pelo
brilho da televisão que se manteve acesa durante toda a madrugada. A poeira há
muito tempo já modificara a cor do piso e dos móveis. A roupa suja se acumulava
em todo canto, e seu roupeiro encontrava-se praticamente vazio.“É, acho que vou
ter que ir à lavanderia dar um jeito nisso”, refletiu.
Levantou-se e
vestiu-se. A calça jeans era a mesma de sempre, e de tão usada estava com os
fundilhos desgastados, quase rasgados, e como apertava a sua barriga e seus noventa
e cinco quilos contidos em seu um metro e setenta de altura. A camisa polo com
riscos horizontais era a última limpa. Logo, não havia escolha: teria de usá-la
com a última jaqueta ainda em condições de uso, toda xadrez. Calçou o primeiro
tênis que encontrou, um All Star que possuía desde a adolescência,
completamente rabiscado por homenagens à banda de punk rock Ramones, e
saiu de casa. Não fez a barba nem tomou café da manhã, tampouco preocupou-se em
escovar os dentes. Estava atrasado, como sempre.
Pegou o ônibus e
sentou-se no mesmo lugar de sempre, próximo à saída. Sabia que ali havia mais
riscos de assalto, mas ignorava tal probabilidade sob o argumento de que, caso
alguém quisesse incendiar o veículo, seria mais fácil fugir por ali. Ninguém
sentou-se ao seu lado, como em todas as segundas-feiras, graças à velha
estratégia de discretamente estourar um frasco de “peido alemão” no corredor,
ao lado de seu assento. Soares detestava dividir o seu espaço.
Contudo, algo de
diferente ocorreu naquela amanhã.
Soares estranhou
quando o ônibus parou antes do ponto de sempre. Viu que havia um caminhão de
bombeiros terminando de apagar um incêndio ocorrido em frente ao local onde
trabalhava. Havia muita fumaça, mas nada de fogo. Como já estava próximo de seu
destino, resolveu descer ali mesmo. Não valia a pena esperar pela liberação do
trânsito e, como estava atrasado, teria de caminhar.
Enfim, pendurou
em seu pescoço o crachá que o identificava como funcionário da Autarquia de
Suprimento de Pessoal para Organização Nuclear de Especialidades da cidade de
Burocrata, entrou no edifício que era o seu segundo lar há duas décadas. Era o
servidor público mais antigo dali, e sentia-se à vontade com aquilo. Mesmo
assim, detestava dizer “bom dia” ou “boa noite” para seus colegas da
repartição. “Inútil”, pensava. Não falava com ninguém, e tudo o que precisava
fazer era chegar até a sua sala, carimbar os papéis de sempre, anexar outros,
fazer as cópias que lhe orientassem a fazer e obter a alforria para retornar à
casa, à televisão, à pizza e à “mulher formidável” que residia em seus sonhos.
Entrou na sua
sala e deparou-se com a janela aberta. Viu que parte da fumaça oriunda do
incêndio que havia sido apagado há pouco pelos bombeiros estava ali, e seu
cheiro era desagradável, semelhante a plástico queimado. Rapidamente fechou a
janela e sentou-se em sua mesa. Abriu o jornal que havia sido deixado em sua
mesa e começou a lê-lo de trás para frente, começando pelos esportes. Meia hora
depois, sentiu a necessidade de tomar um bom café, mas ele não poderia ser
forte. Levantou-se, espreguiçou-se e acionou a chaleira elétrica para aquecer a
água. Enquanto esperava-a aquecer, seu telefone tocou.
- Alô – disse
secamente, ao atender o telefone.
- Ô, Soares. É o
Souza. Tudo bem? Olha, tem um sujeito aqui na minha frente, ele é despachante
de uma empresa. É o seguinte: o cara tem uma pilha de documentos que estão sem
os carimbos de revisão especial técnica. Eu tava vendo aqui na lista de tarefas
e essa é a sua função, não é? Você que faz essa revisão especial técnica, não?
Soares respirou
fundo e pensou, com raiva, sobre aquela situação. Não era a primeira, nem a
segunda vez que aquilo acontecia. A confusão sempre era feita por aquele
incompetente do Souza.
- Souza, eu já
lhe falei que... - tentou responder Soares, mas seu colega não permitiu que
terminasse.
- Desce aqui
rapidinho que o cara tá nervoso. Chega aí! - e desligou.
Soares observou
a água ferver na chaleira elétrica. “Ele pode esperar”, pensou. Derrubou o
líquido no filtro de café, e passou a prepará-lo. Quando a bebida enfim ficou
pronta, deixou, como sempre, o filtro com a borra repousando sobre uma xícara
apelidada por todos como “esgoto”, em cujo fundo havia um líquido escuro com
manchas verdes, criado por gotículas do pó úmido descartado. Soares sempre
olhava com repugnância para aquela substância estranha que já se aproximava da
borda da xícara e, como fazia em todas as vezes, pensou: “amanhã eu lavo essa
merda”.
Sentou-se em sua
mesa e voltou a folhear o jornal enquanto saboreava aquele café que só não era
mais claro do que a água utilizada para fazê-lo. Então, o telefone tocou outra
vez.
- Ô, Soares! O sujeito ainda tá aqui, cara!
Não vai descer?
Soares suspirou e nada disse. Apenas desligou
o telefone e engoliu o resto do seu café. Saiu de sua sala e começou a descer
as escadas no ritmo dos ents. Enfim, chegou ao local onde trabalhava o Souza, seu colega, o setor
de Protocolo Unificado Municipal. Em frente ao balcão estava o despachante, que
estava com a tal pilha de documentos sem o carimbo de revisão especial técnica.
Soares olhou para os documentos, olhou para o despachante e, em seguida, para o
seu colega, e disse:
- Olha, me
desculpe, mas isso não é minha atribuição. Sou responsável pelo carimbo de
revisão técnica de especialidades, e não de revisão especial técnica. Isso é no
terceiro andar, com o Magalhães.
- Como é que é?
Qual a diferença? - perguntou o despachante.
Soares respirou fundo, ajeitou os seus óculos,
coçou sua barba por fazer e, então, respondeu:
- Também não é
minha atribuição dar explicações sobre o funcionamento da Autarquia, mas isso o
senhor pode verificar no segundo andar, no Departamento de Informações Gerais e
Atendimento, o DIGA. Fala ali com a Dona Rosa.
Dito isso, Soares
deu as costas ao despachante e subiu as escadas, a fim de retornar à sua sala.
Já em sua mesa, sentou-se e voltou a ler o jornal. A pilha de documentos ao seu
lado poderia esperar mais um pouco. Viu que sua xícara estava vazia, o que o
motivou a levantar-se e servir-se de mais café. Contudo, quando aproximou-se da
garrafa térmica, algo estranho aconteceu.
A xícara
tradicionalmente conhecida como “esgoto” começou a tremer. Soares estranhou,
afinal, não havia esbarrado no móvel sobre o qual estava o objeto, assim como o
edifício não tremera. “Bobagem”, pensou consigo mesmo. Então, voltou a
servir-se do café e sentou-se. Viu que já havia passado mais de uma hora desde
que chegara na repartição e nada havia feito quanto àqueles malditos documentos
que estavam ocupando um espaço precioso em sua mesa. Respirou fundo e, enfim,
convenceu-se de que era hora de começar.
Pegou o
primeiro, olhou rapidamente nos detalhes que precisavam ser revisados e “TUM”,
carimbou seu rodapé. Fez isso repetidamente e, uma hora depois, havia se
livrado de tudo o que tinha para fazer no dia.
Ligou o
computador e passou a jogar “paciência”. Apesar do café, estava sonolento.
Vinte minutos depois, ouviu, mais uma vez, a “xícara esgoto” tremer. Assim como
antes, nada de excepcional havia ocorrido, inexistindo motivos para que aquele
objeto vibrasse. Soares levantou-se e foi verificar o que estava acontecendo.
“Acho que é hora de lavá-la”, pensou, mas quando foi pegá-la, esta vibrou outra
vez, assustando o servidor público da Autarquia de Suprimento de Pessoal para
Organização Nuclear de Especialidades da cidade de Burocrata. “Mas que
diabos...?”
Então,
aconteceu: a xícara estourou e, da gosma escura e de manchas verdes surgiu uma
criatura com forma humanoide. Ela era pequena, um pouco maior do que a xícara,
mas parecia crescer a cada segundo. Soares sentiu o calor de sua urina se
esparramar pelas suas calças e correu.
Em segundos o
monstro já era do tamanho de um ser humano. Era escuro e cheio das manchas
verdes que provavelmente eram mofo. Seu rosto era semelhante a uma formiga e
gritava como uma águia. Apesar de gosmenta, a criatura era suficientemente
sólida para ficar de pé e caminhar, e tinha uma força descomunal. Soares fechou
a porta de sua sala e a trancou, mas a criatura a destruiu como se fosse de
papel. O servidor público esforçava-se para fugir, mas o peso de sua barriga
flácida era um obstáculo. Olhou para trás e percebeu que o monstro se
aproximava cada vez mais. Faltava pouco para alcançar as escadas, e quando
estava a poucos metros de seus destino, sentiu a mão gosmenta da criatura, cujo
cheiro de café velho e podre era mais repugnante do que vômito, tocar-lhe o
ombro.
Soares caiu,
implorando por piedade. A criatura o observou calmamente, como um predador
prestes a devorar a sua presa. Em pânico, Soares gritou, gritou e gritou...
- Soares! Acorda,
Soares! - dizia Souza – Tá gritando aí que nem um louco! Vamos lá! Tá na hora
do almoço. Acaba o teu jogo de paciência depois.
Alberto Soares olhou
para o seu colega e ao redor e viu que nada estava diferente de antes.
Inclusive a “xícara esgoto” estava exatamente como outrora, com o filtro de
café sobre ela repousando.
- Puxa vida,
peguei no sono e tive um pesadelo daqueles...
- Tô lhe
dizendo, cara. Essa jornada tá muito pesada. Não tem como tocar assim. O
sindicato tá planejando uma greve, porque é muito trabalho, ao ponto de
pegarmos no sono durante o expediente. Estão nos exaurindo! Assim não dá! -
falou Souza.
- Pois é. Tá
complicado. Muita correria - concordou Soares. Em seguida, levantou-se de sua
mesa e sentiu uma certa umidade em sua cueca. Souza não resistiu e caiu na
gargalhada.
- O que é isso,
cara? Bexiga vazou?
Soares olhou
para si e percebeu que havia urinado nas calças. O “calorzinho úmido” de seu
pesadelo fora real.
- Puta que
pariu! Vou ter que queimar minha hora de almoço pra ir em casa trocar de roupa!
- Mas o que
houve? O pesadelo foi tão pesado assim?
- Foi
estranho... - respondeu, olhando para a “xícara esgoto”. - Talvez seja hora de fazer algumas coisas. - Soares
foi até a xícara a fim de conferir o que a fizera tremer antes que cochilasse.
Aquela vibração foi verdadeira.
Pegou a xícara
podre e a levou ao banheiro. Despejou o líquido repugnante no vaso, puxou a
descarga e lavou o objeto com sabão. Em seguida, levou-o de volta para a sua
sala, deixando-o ao lado da garrafa térmica, e foi embora para usufruir de sua
hora de almoço e colocar uma outra calça.
O monstro da
repartição fora apenas um pesadelo, ou estaria ele adormecido dentro daquele
exemplar servidor público? Não importava. O que realmente era importante era se
haveria redução de jornada de trabalho, pois o trabalho estava extenuando o
gordinho Alberto Soares.
Kkkkkk....Muito bom! Excelente e bem humorada narrativa e crítica à burocracia do serviço público e o dito "excesso"de trabalho. Gostei, inclusive do toque de suspense. ..Beijo!
ResponderExcluirHehehe Obrigado!!
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