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O JOGO DA CEGUEIRA

 


O verão fervia e a praia lotada despejava alegria sobre todos. O rapaz encontrou seus amigos no local combinado e ficou surpreso com o que viu. Um tapume de cerca de três metros de altura por cinco de largura em meio à areia substituíra a rede de vôlei. Vítor, velho parceiro dos tempos de escola, alcançou uma raquete de frescobol para Jaime: “Vamos?”. Ele aceitou o convite e começou a se dirigir para a beira do mar, quando foi interrompido: “Não, não. É um frescobol diferente…”, e o conduziu de volta à estranha parede.

Vítor de um lado, ocultado pelo muro, Jaime de outro. Eles não se viam. Então, a bola veio de surpresa, sem aviso. Jaime conseguiu devolvê-la. O barulho do impacto da raquete do amigo anunciou a rebatida e, assim, o frescobol às cegas continuou.

Ambos queriam rebater a bola, mas era difícil. Sem conseguirem visualizar o outro, o capricho na batida, às vezes, se mostrava perfeito, às vezes, uma armadilha. Jaime corria de um lado a outro e começava a se zangar, ainda mais com as risadas galhofeiras de seus amigos, que assistiam ao jogo sentados sob o guarda-sol. A cada rebatida, a bola retornava ainda mais complicada. “É tênis?”, perguntou. “Não, é frescobol”, respondeu Vítor. A irritação aumentou, até que Jaime, depois de ver a bolinha tocar o chão pela enésima vez, amaldiçoou o oponente, pegou sua raquete e a jogou para o outro lado do tapume. O barulho grave indicou que não atingira a areia.

Os outros amigos, assustados, correram em direção ao lado da quadra até então defendido por Vítor. Depararam-se com ele caído e com o olho direito sangrando. O mundo nunca mais seria visto por aquela janela.

Os dois amigos de infância passaram a se encontrar apenas nas fotografias do passado. Jaime sempre disse que a ideia daquele jogo fora estúpida. Vítor afirmava que estúpido fora o (ex) amigo, que não entendera a brincadeira. “Era frescobol. Era só devolver a bola, caramba”, justificava. Jaime respondia que “não era otário, que aquilo não era frescobol”, mas que a lesão de Vítor fora um “acidente”. O cego nunca aceitou essa justificativa jamais acompanhada por um pedido de desculpas. “Quem provocou a situação foi ele”, explicava Jaime. “Eu levo a raquetada, fico cego, e a culpa é minha?”, respondia, indignado, Vítor.

Assim são os debates pelas redes sociais. Não enxergamos os movimentos do outro, a expressão de sua face, a transpiração de sua pele, levando-nos a ignorar quem ele é, de onde vem, a sua (e a nossa) história. Há apenas a bola a ser rebatida. Que caiam os muros da estupidez, antes que nós, cegos pela raiva e o orgulho, também alimentemos uma cegueira alheia que poderá ser passagem só de ida, sem volta, para a escuridão, pois a ponte da amizade, do perdão e da empatia terá sido derrubada e engolfada pelo abismo do ressentimento.





* Imagem 1: https://www.oticaskohls.com.br/80-dos-casos-de-cegueira-do-brasil-podem-ser-evitados/

** Imagem 2: https://cariocadas.wordpress.com/2012/03/27/carioquice-e-isso-ai-frescobol/

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