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REESCREVENDO MONTEIRO LOBATO

 

A "nova" Tia Nastácia.


Ontem (08/12/2020), no Segundo Caderno do jornal Zero Hora, foi publicada matéria sobre o relançamento de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, livro que integra a clássica coleção do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Coordenada por uma bisneta, a nova edição altera trechos hoje considerados polêmicos, como aquele em que Tia Nastácia é apresentada como “uma negra de estimação” de Dona Benta, por exemplo, agora descrita como sua “amiga de infância”. A personagem ainda é ilustrada de forma diferente da tradicional, vestindo roupas “típicas” africanas (de que país, região, religião…?), com direito a turbante.

A notícia traz um aspecto positivo, que é o relançamento, em si, e toda a promoção de uma obra que, em nosso país, já foi considerada a mais importante da literatura infanto-juvenil e uma grande divulgadora do nosso folclore, a qual elevou Lobato a uma posição fundamental para a nossa cultura nacional, para a nossa identificação como povo brasileiro, como nação. Todavia, o aspecto negativo está, justamente, em ceder à tentação do politicamente correto, reescrevendo-se trechos com o intuito de retirar expressões supostamente ofensivas. E tudo o que envolve reescrita me assusta.

Tia Nastácia incorpora muitas mulheres da época que viviam exatamente como ela e naquelas condições. Trata-se de uma inspiração real sobre mulheres reais. Sua descrição não é fantasiosa, tampouco a relação mantida com sua amiga (e patroa) Dona Benta. Do mesmo modo, a expressão polêmica, inegavelmente ofensiva e inadequada para a atualidade, não o era quando cunhada. Suponho que fosse comum, o que facilitaria o entendimento dos leitores de então. Foram essas as palavras escolhidas pelo autor, e a obra, em si, deixa claro que não há, nela, qualquer cunho objetivamente racista. Além disso, muitos estereótipos nela replicados apenas reverberavam aqueles existentes no momento. Enfim, o livro foi escrito em uma época, por um escritor dessa época e sua história se passava naquela época. Logo, é desonesto intervir na linguagem do texto original. Que incluíssem notas de rodapé ou apêndices para explicar termos que poderiam ser vistos como ofensivos, por exemplo. Todavia, mexer na escrita, em si, é errado.

O relançamento de Reinações de Narizinho precisa ser celebrado, mas a alteração de trechos é temerária pelo precedente que representa. Obra e autor devem ser compreendidos e julgados sob a perspectiva das suas respectivas épocas, e não editados conforme entendimentos contemporâneos. Que crianças e adultos leiam o livro e, com base nos seus valores, façam o filtro e eventual julgamento que se mostre necessário e legítimo. Não atuemos como o Ministério da Verdade retratado em 1984, de George Orwell, pois, um dia, as palavras apagadas e reescritas de forma diferente poderão ser as suas. Poderá ser o seu nome. Poderá ser você.

Tia Nastácia em sua versão "clássica".




Edição de 1988 (Círculo do Livro)

* Imagem 1: Rafael Sam, divulgação (publicada na edição n.º 19.888 de Zero Hora, Ano 57, de 08/12/2020)

**Imagem 2: http://www.monteirolobato.com/miscelania/personagens-do-sitio-do-pica-pau-amarelo/historia

*** Imagem 3: https://www.amazon.com.br/Reina%C3%A7%C3%B5es-Narizinho-Monteiro-Lobato/dp/B078128QG3


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