Ainda criança, assisti ao filme Poliana, de 1960, adaptação do clássico livro homônimo escrito por Eleanor H. Porter em 1913. A obra literária foi, e ainda é, um grande sucesso, gerando diversas continuações ao longo do último século, além de adaptações, como o referido filme, séries entre outras. Uma história marcante e que muito nos ensina.
Poliana (Pollyanna, no original, em inglês) é uma menina que se torna órfã após o falecimento de seu pai, um pobre missionário. A partir de então, ela passa a ser cuidada por uma rica tia severa e, junto a ela e ao novo círculo de pessoas no qual se insere, começa a transmitir a sua ingênua e, ao mesmo tempo, sábia visão de mundo, resumida no chamado “Jogo do Contente”, um tipo de exercício mental cujo objetivo é enxergar o lado bom das coisas, mesmo se a maior parte do contexto apresentado é notavelmente ruim. Toda a história gira em torno disso, daquela personagem sorridente e de bem com a vida, mesmo em meio a tantos problemas.
Pois vivemos um ano mastigadinho para Poliana analisar. Que 2020 é o pior ano do século XXI, até aqui, não há dúvidas. Talvez seja um dos piores da história mundial, se considerarmos tudo o que vem ocorrendo em todos os sentidos. Entretanto, ainda assim é possível tirarmos coisas positivas desse período pandêmico que parece infindável.
Vejamos a questão do home office: onde trabalho, por meses se discutia sobre como funcionaria uma eventual instauração do teletrabalho, sem qualquer perspectiva de que tal passasse a ser implementado. Ocorre que, em março, em apenas dois dias, eu já estava em casa com toda a infraestrutura necessária para o trabalho funcionar adequadamente. E, dependendo da natureza do serviço, laborar em casa é muito melhor. Graças à pandemia, percebeu-se que o trabalho à distância é possível e eficiente para muitas atividades, quebrando, na marra, um preconceito arraigado em muitos setores, públicos e privados.
Outro elemento que não deixa de ser positivo é estar em casa com os filhos. Minha esposa trabalha em hospital, e coube a mim a tarefa de me dividir entre os meus afazeres profissionais e os cuidados com a nossa filha. Isso foi uma bênção, pois, apesar do cansaço (dar conta das duas missões não é fácil), estou não só me saindo bem, superando o desafio que parecia complexo no início do ano, como vejo que maravilha é acompanhar, por 24 horas, o desenvolvimento de uma filha pequena. Antes, de segunda a quinta (nas sextas, dormir mais tarde sempre foi liberado) eu convivia com ela por 3 horas diárias. Eram bem aproveitadas e intensas, é verdade, mas, ainda assim, eram apenas 3 horas. Isso não tem preço. O estresse físico e mental decorrente do esforço para a realização das tarefas de trabalho é compensado pelos abraços e carinhos recebidos durante todo o dia.
O isolamento social imposto pela pandemia nos levou a perceber, na própria pele, a necessidade de cuidarmos mais da nossa saúde. Isso parece uma obviedade, mas oncologistas e cardiologistas têm anunciado uma “pandemia” de problemas relativos a câncer e doenças cardiovasculares decorrentes da ausência de exames preventivos nesse período. Muitas pessoas desenvolveram quadros mais graves, e até irreversíveis, de patologias desse gênero pois temeram sair de casa para se cuidarem, seja por meio dos exames preventivos, seja por outros elementos, como práticas esportivas, por exemplo, que deixaram de ser feitas por meses. E qual o lado bom disso? O lado bom está na vivência do ruim, ou seja, nos foi provado que não dá para dar bobeira em relação aos cuidados com a saúde. Eu, por exemplo, engordei apenas 2 kg de março até agosto, mas meus triglicerídios dispararam, certamente em razão da completa ausência de práticas esportivas no período. Os números provaram que a prevenção ainda é o melhor remédio, e isso nos marca, pois não se trata somente de “sabermos disso”, mas de percebermos, como comunidade, e não com base em casos isolados, as consequências negativas do sedentarismo e da nossa negligência.
Aos que têm fé, 2020 também está sendo desafiador, pois a comunhão tem se mostrado muito prejudicada, igrejas foram mantidas fechadas e o próprio exercício do evangelismo, obstaculizado. Isso também vale para outras religiões, as quais são gregárias por natureza. Mesmo assim, aos que perseveram, têm sido um ano de redescoberta espiritual, de aumento da intimidade com Deus, de orações mais sinceras e menos automatizadas, enfim, trata-se de uma época cujas circunstâncias têm nos transformado, no silêncio de nossas casas, em salmistas que, diariamente, agradecem por ainda estarmos de pé nessa crise, ou, tomados por aflição, mas firmes com fé e esperança, clamamos, de coração, por proteção a nós e aos nossos queridos, pelo fim da pandemia e pelo retorno à vida normal.
A valorização daquilo que realmente importa também seria algo que Poliana apontaria como um benefício desse período. Como cantam os Titãs, “A gente quer a vida como a vida quer”, ou seja, passamos a sentir nossas verdadeiras necessidades nesse período, o que significa um reconhecimento, para nós mesmos, do que de fato vale a pena, a começar por estarmos, livres e desimpedidos, com nossos familiares e amigos queridos e nos encontrarmos ao ar livre sentindo o cheiro da natureza, e não do nosso próprio hálito junto às máscaras umedecidas pela nossa respiração. Mas também percebemos a necessidade do lazer, da descontração, da aglomeração junto a quem amamos e, seja por absurdas restrições governamentais, seja por uma inevitável autocensura, acabamos evitando e adiando estar com as pessoas mais importantes de nossas vidas, além daquelas que moram em nossas casas.
A lista é infinita, e ela não altera, em nada, essa maldição, orquestrada, acidentalmente criada ou fruto do mero acaso que, no final das contas, coloca 2020 como um ano sombrio, especialmente pelas incertezas do período que se seguirá ao controle sobre o Covid-19 espirrado como fogo pelo dragão chinês. Diferentemente do que o disse o ex-presidiário de nove dedos meses atrás, que, a fim de defender maior intervenção do Estado, arrotou que “Ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus”, não se deve celebrar, em hipótese alguma, a pandemia. Poliana não faria isso, ela não fecharia os olhos para aquilo que é ruim. A lição que Eleanor H. Porter, transmitida por meio de sua célebre personagem, é que, mesmo nas trevas, precisamos ser resilientes, percebendo que a escuridão da noite não nos oculta o brilho das estrelas.
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