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A JORNADA DE SANSA

 


Já faz mais de dois anos que “Game of Thrones” (GOT), que já foi a série mais popular do planeta, chegou ao seu fim, mas um diálogo entre as personagens Sansa Stark, interpretada pela atriz Sophie Turner, e Sandor Clegane (o “Cão de Caça”, vivido por Rory McCann), ocorrido no quarto episódio da última temporada, gerou muita polêmica na época e até hoje ecoa em minha mente. Na oportunidade, o Cão diz: “Você mudou, Passarinho. Nada teria acontecido se tivesse fugido de Porto Real comigo. Nada de Mindinho, nada de Ramsay. Nada disso.” Sansa responde: “Sem Mindinho, Ramsay e o resto, eu teria sido um ‘passarinho’ a vida toda”.

 Contextualizando, e resumindo muito o drama de Sansa na série: ela começou sua jornada como prometida de um rapaz que viria a ser rei e que, ao assumir o trono, se revelou um psicopata; depois, foi forçada a casar, contra a sua vontade, com o tio desse rei, a quem, até então, desprezava; após, fugiu e, mais uma vez, foi manipulada por outro personagem, o tal Mindinho, que, finalmente, a daria para casar com o cara mais brutalmente sádico que poderia ser criado em toda a mitologia medieval (Ramsay), que a violentava todas as noites, tratando-a pior do que a um animal.

 Antes uma menina ingênua, Sansa, agora, ao final da série e transcorridos alguns anos na saga, revela-se forte, fria, calculista e, claro, madura. Não mais um passarinho em uma gaiola, mas sim um ser livre, que pensa por si. Logo, a sua resposta soou, para muitos, como uma apologia ao estupro ou às humilhações pelas quais a personagem passou, como se, em tese, seria necessário passar por esse tipo de provação para se transformar naquilo que veio a se tornar. Logo, seria o sofrimento necessário para a evolução e o amadurecimento?

 Creio que não. Há preconceito nessa reflexão, pois leva a crer que a jornada daqueles que não teriam “sofrido” para alcançar determinada glória fosse uma farsa ou algo que não merecesse o devido crédito. Isso porque a ideia de “sofrimento” é relativa, e sempre terá como parâmetro vivências do próprio indivíduo, pois o que se apresenta como sofrido para um não o é para outro, e vice-versa. Mesmo assim, alguém que “chegou lá” com facilidade tem o seu mérito para isso, seja por ter feito escolhas acertadas que lhe permitiram evitar dores ou tropeços, seja porque “nascera em berço esplêndido” (em todos ou em alguns sentidos) e, graças a isso, muito percalços foram evitados. Um berço que, muitas vezes, foi construído com muito suor e sacrifício, o que favoreceu aquele que nele nasceu.

 Todos sabemos que viver não é fácil, ainda que para uns a vida se apresente muito mais dura do que para outros. Agora, o que fazer diante disso? A dureza da vida pode ser encarada como uma maldição da qual somos vítimas, ou como a vida, simplesmente, se apresenta para nós. Justa ou injusta, ela é o que é, e o propósito para isso, às vezes, é um mistério e, por vezes, pode ser explicado por erros do passado de outros, ou mesmo nossos, que acabam culminando em muitas pedras pelo caminho. Logo, ao atingirmos determinadas conquistas apesar dos sofrimentos e percalços, resta-nos orgulharmo-nos pelas dores, ou contemplá-las como marcas da nossa história, como pegadas da nossa jornada, como remendos e cicatrizes que moldaram o que nos tornamos.

 Assim, e que pese estejamos refletindo sobre uma personagem e uma mensagem proferida em um mundo fictício, não há dúvidas de que Sansa não condicionou a sua existência ao sofrimento vivido, mas os aceitou como parte de sua jornada, um passado sem possibilidades alternativas, desprovido de “se”, um passado que tragicamente existiu daquela maneira, mas que a tornou o que ela acabou sendo, não porque deveria assim ser, mas simplesmente porque o foi.

 Ao olhar para trás, não tente promover as dores da sua jornada, mas a aceitação de que elas dela fizeram parte. Você é, hoje, o produto de toda a sua vida até aqui, tanto as coisas boas quanto as ruins. Ao olhar-se no espelho e ficar feliz com o que hoje você é, não procure nos obstáculos a razão da sua vitória, mas na aceitação de que eles estavam lá e, graças a isso, contribuíram para desenvolver a sua habilidade de deixá-los para trás e, enfim, alcançar a linha de chegada. Para onde você olhar, é para onde você vai, e, ao dar o seu testemunho, para onde você apontar, é para onde os olhos dos seus admiradores se voltarão. Se ele mirarem o abismo, e não o outro lado da ponte, a chance de serem engolidos pelas suas profundezas será sempre grande. Promova a vitória apesar dos tropeços, e não os tropeços apesar da vitória.


*Imagem: https://www.vanityfair.com/hollywood/2019/05/game-of-thrones-sansa-the-hound-season-8-reunion

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