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SEM VIRTUDES, SOMOS ESCRAVOS

 


Sou gaúcho e não sei se os brasileiros cantam os seus hinos estaduais com tanta emoção, ofuscando, quando tocado, até mesmo o hino nacional. Porém, a novidade é o surgimento de um movimento organizado para alterá-lo, uma vez que os versos “povo que não tem virtude // acaba por ser escravo” teria conotação, ou origem, racista.

A iniciativa não se limita a políticos, mas vem sendo apoiada pela imprensa, como é o caso, especialmente, do jornalista Túlio Milman, dono de uma página inteira no jornal Zero Hora e que dedicou toda a semana passada para defendê-la.

Há muitas razões para não alterar o hino, mas esse espaço sucinto não me permite ir além de uma interpretação específica da letra, cujos versos se mostram desprovidos, em absoluto, de conotação racista. Entendimento diverso é mera presunção foucaultiana, e somente visa à “revelação” do suposto aspecto “inconsciente” constante na letra. Trata-se de uma atitude típica dos que buscam, por ignorância ou desonestidade intelectual, um estado de guerra civil constante, em que todo diálogo, toda palavra, todo tom de voz é um campo de batalha da revolução cultural que busca à reconstrução de uma nova civilização, começando não pela reinterpretação, mas pela reescrita, ou, até mesmo, pelo apagar da arte e da própria história.

Diferentemente do referido por Milman, a reflexão constante na letra vai muito além “da dominação exercida pelo centro do país sobre o Rio Grande do Sul” e nada tem a ver, muito menos de forma “sutil” e “simbólica”, com a ideia de “segregação racial” relatada pelo seu colega Jéferson Tenório. Se a ideia é falar do contexto da elaboração do hino, cabe apontar a estrofe que, apesar da beleza poética, foi excluída, no passado, por mencionar povos estranhos ao gaúcho: “Entre nós reviva Atenas // para assombro dos tiranos // Sejamos gregos na glória // e na virtude, romanos”. Portanto, a ideia de virtude trazida no hino vem de uma inspiração aristotélica e greco-romana clássica. Posteriormente regada pela fé judaico-cristã (povos que, em algum ou em vários momentos da história, já foram igualmente escravizados), moldou nossa imperfeita civilização ocidental, que, incontestavelmente, a partir de séculos de experiências firmadas em tais bases, evoluiu e nos conduziu a uma liberdade sem precedentes na história humana, levando-nos, inclusive, a abominar qualquer forma de escravidão.

A verdade é que, o que nos torna vulneráveis para a escravidão da alma, e não do corpo, é, justamente, a falta de virtude. Por isso que “não basta, pra ser livre, ser forte, aguerrido e bravo”. Esses elementos até podem evitar a escravidão física, mas não a do espírito, e aí está a relevância atemporal do hino. Mesmo assim, os carcereiros de pensamento não descansarão até estarem certos de que todas as correntes que deles discordarem estejam devidamente chaveadas em pesados cadeados.

Enfim, ainda que o hino não seja alterado, agora alguns acusarão de racista quem cantá-lo, e constrangerão instituições públicas e privadas a, no mínimo, não tocá-lo até o final. Eis o fruto plantado: mais divisão quando não havia divisão. O pomo de Éris brilha como nunca.

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