Hoje eu gostaria de escrever sobre um tema muito pertinente e interessante. Há tempos venho refletindo a respeito, mas, por falta de tempo, não conseguia esvaziar a mente o suficiente para tanto. Agora, aproveitando as minhas férias (estou em casa e não em uma praia ou nas montanhas, mas, ainda assim, de férias) e um intervalo proporcionado por uma sonequinha da Glória, dedicarei alguns minutos para registrar aqui meus pensamentos.
Obviamente, aquele bando de adolescentes desmiolados, mas que, ao se olharem no espelho, enxergavam a maturidade encarnada, riram daquilo e não levaram a sério o comentário do professor, mas até hoje ele ecoa em minha mente, porque talvez tenha sido muito mais profundo do que parecia. Essa constatação não valia apenas para aquela situação relatada pelo professor Celso Rodrigues, o "Blãs", mas para muitas outras. O que se vê, hoje, e vem se desenvolvendo há décadas, é a celebração dos vícios.
Quando falo em vícios, não me refiro, objetivamente, ao significado psicológico e químico da palavra, mas àquele que se opõe ao conceito de virtude, ou seja, ao significado que remete à ideia de defeito, imperfeição e até de tendência de contrariar a moral estabelecida. A grande confusão que percebo está no reconhecimento de que eles existem (e em relação aos quais todos somos propensos a, em uma ou outra medida, cometermos, com mais ou menos frequência), e a sua celebração, ou seja, na exaltação quando do seu cometimento. No exemplo relativamente ingênuo que relatei acima, os estudantes, em vez de reconhecerem sua falha por terem estudado pouco, ou por lamentarem o eventual excessivo grau de dificuldade da prova que realizaram, reagiram como se o seu objetivo, ou o lugar cômodo onde deveriam se encontrar seria o do fracasso, de modo que a nota vermelha representaria a conquista ou a confirmação de algo que já existia, uma conformação a respeito de uma condição em relação a qual não haveria o que fazer, mas apenas ser levado pelas águas desse tropeço e, a fim de evitar julgamentos alheios, nelas mergulhar, dar cambalhotas e relaxar, boiando como uma folha seca. Uma reação que representa, efetivamente, a formação de uma barreira à prova de cobranças e julgamentos.
Esse tipo de celebração de vícios é verificado em diversos momentos, e um deles é o adultério, por exemplo. Não é raro nos depararmos com alguma pessoa famosa relatando que já foi traída e que também traiu, e que isso é normal (havendo a tradicional confusão entre "normal" e "comum"). Em vez do julgamento, a mídia e os formadores de opinião, que hoje se dispersam entre os mais diversos meio, "toleram" tal reflexão, colocando tal visão de mundo no mesmo patamar que aqueles que condenam tal prática destrutiva para as famílias. Tratar-se-ia, apenas, de outra visão, um entendimento plural acerca de "como as coisas são".
Outro exemplo está no chamado "uso recreativo de drogas" (sejam elas quais forem). Trata-se de uma prática ruim em todos os sentidos, e embora ela exista, não é saudável, tampouco recomendável. Em vez de uma celebridade ser atacada pelo mau exemplo que representa por usar tais substâncias (independentemente de sua contribuição artística), é exaltado o seu espírito "rebelde" e "confrontador".
Outra deturpação existente é aquela atinente às pichações urbanas. Embora algumas sejam conceituadas como "grafite", tendo em vista a notável qualidade gráfica, não são sopesadas adequadamente com a violação do direito de propriedade da superfície utilizada. Bela ou feia, qual o direito do "artista" realizar tal intervenção na minha parede sem minha autorização? Nesse caso, grande parte da opinião pública defende o grafiteiro, sob o argumento de que ele faz arte, colocando em segundo plano o direito de propriedade daquele que teve sua fachada vandalizada. Quando se está falando das pichações urbanas tradicionais, e não o grafite, a tolerância é apenas um pouco menor, havendo grande resistência quanto à implementação de penas mais pesadas para tal crime (sim, pichação é crime), pois seriam "desproporcionais". O argumento é sempre o mesmo: "é arte". De qualquer forma, a verdade é que grandes correntes de influência midiática defendem os pichadores, celebrando suas "empreitadas" e níveis de dificuldade, como se tratassem de esportes radicais.
Em todos esses casos, o ponto em comum é a celebração do vício, ou seja, daquilo que é errado, ruim, prejudicial, violador, anticivilizatório, propagador do caos e da anarquia. Sim, em todos os exemplos se verifica a ideia de que é normal e tranquilo o desrespeito às regras morais ou às instituídas, sendo exaltado quem o faz. O traído que trai é exaltado como alguém que devolve na mesma moeda, equilibrando, assim, o relacionamento, permitindo-lhe, dessa forma, um "recomeço"; o usuário de drogas é exaltado por ignorar as regras "preconceituosas" da sociedade; o pichador é "respeitado" pelas suas habilidades técnicas e alpinísticas, além de ser apontado como um vetor da cultura contemporânea. A questão é que todas essas práticas são destrutivas para a sociedade, e é por isso que são milenarmente intoleráveis. O adultério fere corações, destrói famílias, gera chagas por vezes incuráveis, demolindo ou reduzindo drasticamente a capacidade de uma pessoa voltar a confiar plenamente em alguém; o uso de algumas drogas pode, em alguns casos, não resultar em nada, mas em muitos culmina em grandes problemas ao usuário ou à sua família, alguns por um certo tempo, outros por toda a vida (até o seu fim); a pichação gera uma terrível poluição visual e representa, àquele que não a autorizou em sua fachada, verdadeiro ato de vandalismo, em um desrespeito absurdo ao direito de propriedade.
O fato é que há uma grande diferença entre o reconhecimento de que os vícios existem e a sua confusão com virtudes. O grande motor para isso, falando de um modo simplista e ingênuo, seria a luta contra a hipocrisia, afinal, "o que aponta que o adultério é errado certamente trai ou já traiu", diriam alguns; o que condena o uso de drogas "não nega uma cerveja e certamente tem uma coleção de porres", falariam outros; e "o que ataca a pichação nada fala contra outras mazelas das cidades", completariam outros. Tudo pode ser verdade, afinal, as pessoas são falhas. A questão é: a constatação acerca do que é certo ou errado depende da perfeição das pessoas? A resposta é não, é claro. Todos somos falhos. Entretanto, o erro estar em exaltar os vícios e não as virtudes. Está em reverenciar o anti-herói ou até mesmo o vilão em vez do herói, propriamente dito. Isso porque ao condenarmos o erro, nós, de nossa parte, não o propagamos. Contudo, ao celebrarmos esse erro, ao exaltarmos o vício, fazemos um desserviço e sim, o promovemos e nos tornamos vetores de sua expansão. Assim, em vez de combatermos nossas próprias falhas no nosso interior, enfrentando os nossos demônios, optamos, covardemente, por promovê-las, rindo de nós mesmos e querendo que outros se afundem conosco, como fizeram os dois alunos que riam juntos ao verem sua nota horrorosa na prova que fizeram.
Todos somos imperfeitos, mas a imperfeição é um estado que deve ser sempre combatido. Um combate sereno, e não perturbado e carregado de culpas, mas, ainda assim, um combate contra algo que é reconhecidamente ruim e destrutivo. Os vícios jamais serão extintos, mas a bandeira que todos devemos tremular é a das virtudes, daquilo que é bom e que foi capaz, em mais de 10.000 anos de civilização humana, de nos trazer até aqui. Não percamos isso de vista, pois a bandeira dos vícios deve ser guardada. O vento que a faz tremular não carrega sementes que trazem a vida, mas apenas venenos que levam à morte.
Muito bom o texto. Claro, objetivo e certeiro. As bandeiras das virtudes é que devem ser enaltecida s e servirem de exemplo para uma sociedade melhorar . Será que esta apologia ao " vicio" não é um dos cerne da crise de valores de nosso mundo? Um grande abraço pela lucidez do texto.
ResponderExcluirMuito obrigado! Grande abraço!
Excluir