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A HISTÓRIA DA MINHA VIDA - #5: BOLINHA DE SABÃO


Não me recordo de quando comecei a frequentar a creche Bolinha de Sabão, então localizada na Rua Manoel Leão, Bairro Ipanema, em Porto Alegre, mas creio que lá estudei desde o meu primeiro ano de idade. Gostava muito daquele lugar, e de tantos amiguinhos que ali fiz, alguns permanecem até hoje, como o Edisson Ferreira Filho e a Luana Petrini.

A creche era um antigo imóvel adaptado com duas construções, uma frontal e outra de fundos, com um pátio entre elas. Ao lado das edificações e do “pátio intermediário” havia outro espaço completamente livre, do tamanho do terreno, cheio de opções para brincadeiras, como escorregador, balanços, gangorra etc. O chão era coberto de areia e lembro que seu cheiro não era nada agradável. Anos depois, descobri que derivava de cocôs feitos por gatos, os quais provavelmente viam aquele lugar como uma gigante “caixa de areia”.

Muitas professoras marcaram a minha memória, em especial as “tias” Cíntia, Denise e Milene. Como elas estarão hoje? Acho que nunca saberei. Denise era a administradora do lugar, e creio que Cíntia, além de ser a professora do “maternal”, a ajudava, mas não tenho certeza. Já a tia Milene cuidava dos mais velhos, os veteranos da creche: os marmanjos do Jardim A.

Tenho muitas recordações da Bolinha de Sabão, e creio que elas mereceriam, cada uma, um capítulo em especial, mas deixarei isso para as principais. Aqui falarei, de um modo geral, de alguns fatos divertidos, mas que não valeriam mais do que poucas linhas.
Dos colegas que tive, lembro do nome de vários, embora não tenha ideia do sobrenome de quase todos.

Marcelo era um “baixinho” (quem não era?) moreno, beiçudo. Como quase todos, era muito legal. Lembro que houve uma vez em que podíamos levar nossos brinquedos para brincarmos livremente. Marcelo levou um boneco do Macgaren (vilão da série japonesa “Jaspion”) e eu, uma espada de plástico do Jiraya (outro herói japonês da época). Eu queria muito trocar com o Marcelo, de modo que ele brincasse com a espada e eu com o boneco. No entanto, Marcelo não aceitou, e até hoje me frustro por nunca ter brincado com o bonequinho do Macgaren. Acho que vou levar isso para a minha terapia.

Quanto às meninas, lembro da Cíntia, que era apaixonada por mim. Engraçado como as coisas são, porque eu não dava bola para ela, mas me esforçava para ser diplomático. Lembro bem disso, o que pode ser representado por uma pequena história. Cíntia havia saído da creche e se encontrava matriculada em outra instituição. Um dia minha mãe chegou para mim e disse que eu passaria a tarde na creche da Cíntia porque ela queria muito me ver. Aceitei educadamente (leia-se “em silêncio”) e fui. Lá, um ambiente totalmente estranho para mim e, embora limpo e bem cuidado, escuro (creio que se tratasse de um dia nublado e chuvoso), a professora perguntou para a Cíntia quem era o seu amiguinho. Ela respondeu “É o meu namorado”. Eu pensei: “Não, não sou, não sou!”, mas fiquei em silêncio. A Cíntia não falou comigo naquele dia, e imagino que ela precisava me ver pessoalmente para se decepcionar de vez. Enfim, entrei mudo e saí calado da creche da Cíntia e, com ela, nunca mais falei. Que tenha encontrado alguém digno do seu amor!

Falando em amor, eu era um galã na creche. Creio que foi a minha melhor fase, afinal, tudo o que precisava, no ponto, era eu dizer que “gostava” de fulana, ela respondia que a recíproca era verdadeira e pronto, nada mais acontecia e mantinha-se acesa a mera confirmação do sentimento platônico recíproco. Ah, a simplicidade, a beleza e a pureza das paixões infantis! Na minha segunda infância e adolescência era bem mais complexo! Ainda bem que, anos depois, conheci a Roberta. Obrigado, amor!

Lembro que a minha grande paixão da creche foi a Desirée, mas também me recordo de que ela não me dava muita bola. Também havia a Shirley e a Taiana. Em relação à Desirée, sei que havia uma festa de final de ano (sobre a qual falarei mais adiante) em que eu gostaria de ter dançado com ela, mas isso não aconteceu, o que me frustrou. Da Shirley não lembro absolutamente nada, a não ser que eu “gostei” dela em algum momento da minha jornada na creche, mas nada mais. Finalmente, quanto à Taiana, há uma história engraçada e de certa forma polêmica.

Taiana era morena, não negra, mas tinha uma pela escura, meio mediterrânea. Na época, meados de 1990, a Mara Maravilha fazia sucesso com um programa do canal SBT, e havia lançado uma música chamada “Curumin ie ie”, se não me engano, e como eu assistia ao seu programa e volta e meia nele era exibido o videoclipe da canção (de qualidade técnica “espetacular”), no qual havia várias crianças indígenas, aquele estereótipo estava gravado na minha mente infantil. Então, durante uma aula, e não me lembro exatamente do motivo, a nossa professora, Tia Milene, trocou a roupa da Taiana em um canto da sala enquanto estávamos em meio a alguma atividade. Eu, inocentemente, olhei para a Taiana no momento em que ela colocava uma blusa e disse, relacionando-a às coadjuvantes curumins do videoclipe de Mara Maravilha: “Parece uma índia!”. Não imagino o que Tia Milene pensou a respeito de mim naquele momento, ou o que, segundo ela, minha família me ensinava. Não sei se ela concluiu que minha manifestação fora “racista” ou qualquer coisa parecida. Só sei que fui punido! Como pena, fui enviado para o berçário! Lá permaneci por alguns longos e infinitos minutos, sentado em um banco de praça em miniatura enquanto assistia ao meu irmão dois anos mais novo e seus coleguinhas brincarem de uma forma muito primitiva segundo os meus experientes olhos de quatro ou cinco anos de idade.

Taiana, que tinha um irmão chamado (ou apelidado) de “Tafão”, viria a ser minha vizinha quando fui morar no Jardim Isabel anos depois, mas por pouco tempo. Creio que em 1998 sua família mudou para a cidade de Canela, na serra gaúcha, e nunca mais a vi.

Outra menina da creche, e esta é minha amiga até os dias de hoje, era a Luana. Embora mais nova do que a maioria dos colegas, pois nascera no ano de 1986, e não em 1985, Luana era a mais alta, e concluo que eu também, pois sempre quando fazíamos filas paralelas, com meninos de um lado e meninas de outro, Luana ficava ao meu lado no último lugar. Sim, meus amigos, eu, que hoje meço 1,66 m, já fui o mais alto de uma turma.

Em relação à Luana, como eu disse, somos amigos até os dias de hoje. Ela e Edisson são os meus amigos mais antigos, as “Bolinhas de Sabão” que ainda não estouraram, seguindo ao meu redor em minha vida. É evidente que a vida nos afasta em alguns momentos e nos aproxima em outros, mas com eles sempre mantive um vínculo duradouro e estou certo de que eterno. No ponto, é importante falar que, embora tenhamos, hoje, menos contato do quem outras épocas, cheguei a celebrar o seu casamento (sim, esse é um outro ofício que tenho – interessados, mandem-me mensagem in box via Facebook). Ainda quanto a ela, seus pais, Zeca (cujo verdadeiro nome é Rogério) e Jeane Petrini, se tornaram, pouco tempo depois, grandes amigos dos meus pais, e os dois casais ainda viriam a fazer outras amizades que, por conseguinte, resultaram em muitos amigos que tenho até hoje. São eles a Ieda e o Paulão Luz, o Euclides e a Sueli Chiqueti, e a Magda Gonçalves. Gostaria de destacar essas pessoas para quem tenho muito carinho porque, além de serem muito especiais, presentearam o mundo com amigos maravilhosos: Bruno e Biba (Gabriela) Luz; Gustavo, Renata e Rebeca Chiqueti; Aline, Agda e Ana Gonçalves; e, além da Luana, a outra filha de Zeca e Jeane, Tamires. Embora hoje eu mantenha com alguns bem mais contato do que com outros (especialmente com Bruno e Biba, que são meus padrinhos de casamento), todos foram, à sua maneira, importantes em algum momento da minha vida e têm meu carinho especial.

Voltando à creche, lá eu tinha um “xará”, cujo sobrenome era Santos. Eu o conhecia como Renan Santos, e ele me chamava de Renan Guimarães. Claro que quando eu falava com ele o chamava apenas de “Renan”, mas ele sempre me chamava de Renan Guimarães, o que me incomodava um pouco. Nada contra o meu último sobrenome, mas eu sempre achava esquisito ouvir o “Guimarães” quando era chamado para brincar. “Oi, Renan Guimarães! Vamos brincar na gangorra?”, falava Renan Santos. Mesmo assim, ele era um dos meus melhores amigos da época da creche, mas a deixou um pouco mais cedo (acho que um ano antes de mim). Eu sentia saudades do meu amigo e queria vê-lo, mas não havia as facilidades de hoje para encontrar alguém, como os mecanismos de busca pela internet e as redes sociais. Assim, meus pais, compadecidos de mim, levaram-me até a casa dele para encontrá-lo. Ao chegar lá, quem abriu a porta foi uma mulher diferente, de outra família, que nos explicou que comprara a casa da de Renan Santos, e completou dizendo que eles haviam mudado para a cidade de Bagé, na fronteira sul do Rio Grande do Sul. Fiquei muito triste e abri um berreiro de bebê, e lembro bem disso. Contudo, acho que uns quatro anos depois eles retornaram à Porto Alegre e retomamos o contato e nossa amizade, mas ela não perdurou adolescência adentro.

A última vez que o vi foi em Garopaba, SC, no ano de 2005, em uma casa noturna durante o meu último carnaval solteiro (conheci a Roberta, minha esposa, uma semana depois). Embora lúcido, estava, digamos, entorpecido pelas alegrias do feriadão mais celebrado pelos jovens. Com uma linguagem marrenta, hálito de vodca misturado com cerveja, mas ainda assim me chamando de Renan Guimarães, ele me pediu carona para voltar para a cidade. Como eu não iria para Porto Alegre, disse que não seria possível. “Então tá, Renan Guimarães! Falou, meu brother! A gente se fala!”, respondeu ele.
Nunca mais nos falamos.

Havia também o Ricardo, de quem não recordo absolutamente nada da época em que estudava na creche, mas sei que ele estava lá. O fato mais marcante relacionado a ele não ocorreu na época em que eu frequentava a Bolinha de Sabão.

Eu estava em 1991, meu primeiro ano na Escola Mãe de Deus (na época não era chamada de “Colégio” Mãe de Deus), e voltava para casa a bordo da Kombi conduzida pelo Tio Ademir (detalhes sobre o início da minha época do “Mãe de Deus” e das “aventuras” da Kombi virão mais tarde, é evidente). Meu irmão Henrique ainda estudava na “Bolinha de Sabão” e também era buscado pelo Tio Ademir, que transportava, além de mim e meu irmão, um bando de crianças e adolescentes infernais. Ricardo sempre me via pela janela da creche voltada para a rua e abanava inocentemente para mim no momento em que pegávamos o Henrique, feliz por reencontrar, ainda que por um breve momento e separado por alguns metros, seu antigo colega, e eu, com o mesmo sentimento, retribuía, sempre acompanhado do bom sorriso ingênuo da infância.

Contudo, um dia, em um sinal de que eu estava crescendo, preocupei-me, pela primeira vez, com os outros. No caso, havia um adolescente chamado “Marcão”, que, segundo minha precisa memória, deveria medir uns 2 metros de altura, debochou do meu aceno alegre. Nem lembro o que ele disse, mas sei que foi algum comentário que me constrangeu, chamando-me de criancinha ou algo do tipo. Achei um absurdo ser chamado de criancinha, afinal, eu não era mais um piazinho de creche, mas uma pessoa de respeito que estudava em uma grande escola, ora bolas. E faria SEIS anos naquele ano!

O fato é que, no dia seguinte, Ricardo abanou e eu não retribuí. O vi pela janela da Kombi, e ele percebeu que eu o enxergava. Ele abanou outra vez, mas o sorriso se desfez em seu rosto. Num primeiro momento, ele exclamou, alegre, abanando: “Renan! Renan!”. Como não houve resposta, seguiu abanando, mas suas exclamações foram substituídas por interrogações: “Renan? Renan?”, e sua mão, inicialmente agitada, perdia força e entusiasmo, diminuindo a velocidade de seus movimentos. Eu o enxergava, o fitava, mas ignorei sua existência, como se ele fosse um fantasma. Então, além do sorriso, a esperança de resposta que ainda havia em Ricardo foi desintegrada, e ele desceu do parapeito da janela da creche. Senti-me mal e fui tomado por um grande peso na consciência. Foi a minha primeira “maldade” da qual tenho lembranças, embora eu não tivesse essa intenção.

No outro dia, estava decidido a retribuir os abanos de meu antigo coleguinha. Contudo, ele não apareceu. Ele nunca mais apareceu até o fim daquele ano em que meu irmão ainda estudava na “Bolinha de Sabão”, e nunca mais o vi, ou seja, nunca tive a oportunidade de lhe pedir desculpas. Portanto, a última imagem que tenho de Ricardo foi a da criança decepcionada por ser ignorada por seu amigo, um olhar de partir o coração de um adulto e de perturbar uma criança. Da parte dele, sua última visão a meu respeito foi a de um amigo desleal, que foi engolido pelos ventos da maioria, levando-o a dar às costas aos velhos companheiros. Claro, é possível que ele tenha apenas concluído que eu realmente não o enxerguei, ou, ainda, talvez não tenha achado nada dentro da sua imaturidade infantil, mas duvido: crianças entendem e compreendem bem mais do que os adultos “inteligentes” supõem. Enfim, acho que também vou levar isso para minha terapia.

Havia outros colegas, como Felipe, um guri cuja única lembrança que me restou foi a de seu nariz escorrendo ranho; Francine, uma loirinha que lembro ter dançado com o Edisson em uma festa junina (uma informação muito relevante, é evidente); e Max. Especialmente quanto ao Max, posso dizer que foi uma amizade que também perdurou posteriormente ao fim da era “Bolinha de Sabão”. Chegamos a nos ver durante alguns anos, especialmente em aniversários, até que perdemos contato, o qual só foi retomado, mas apenas cordialmente, na adolescência, quando ele passou a estudar na mesma escola que eu (o “João Paulo I”). Max, infelizmente, faleceu muito precocemente, alguns anos atrás, em um trágico acidente automobilístico.

É oportuno referir, ainda, os dois grandes “líderes” que tínhamos na creche: os irmãos Diego e Rafael. Ambos eram mais velhos do que nós: Diego tinha oito anos de idade, e Rafael, seis. Evidentemente, eram bem maiores fisicamente, e a diferença de idade os tornava líderes naturais, não pela força, pois recordo que eram bem legais, mas pela “sapiência”, especialmente Diego. O via como um “herói”, um cara que sabia muito e conhecia os mistérios do “mundo exterior”, afinal, já comparecia à escola, sendo que apenas frequentava a creche à tarde porque certamente seus pais não tinham com quem deixá-lo, assim como o seu irmão, algo que, hoje, imagino não ser possível. De qualquer forma, a respeito deles, especialmente de Diego, é engraçado trazer à tona uma breve história.

Era fim de ano e estávamos realizando uma atividade de recortes de desenhos de temática natalina, como de árvores de natal, botas, guirlandas, Papai Noel, renas etc. Sempre detestei esse tipo de atividade, pois não sou um cara muito “coordenado” para esse tipo de função. Nunca fui muito caprichoso, ora fazendo recortes tortos, ora exagerando na cola, grudando o que não deveria grudar, pintando fora do espaço destinado para tal, enfim, como vocês percebem, estou escrevendo, e não desenhando, esculpindo ou pintando, o que esclarece eventuais dúvidas a respeito.

Assim, voltando ao dia em questão, lá estávamos nós, recortando “cuidadosamente” as figuras natalinas, até que, por um lapso, ao cortar a bota, eliminei o seu salto. Ou seja, a bota ficou plana, não tinha mais o salto. Eu, sinceramente, nem percebi isso, afinal, para a minha mente tecnicamente limitada no ponto, o recorte estava plenamente simétrico. Entretanto, o Sábio Diego logo constatou minha terrível falha: “Renan, tu cortou a sola da bota!” (ele quis dizer “salto”, mas falou “sola” – lembrem-se de que ele tinha oito anos de idade...). Nesse momento, formou-se um burburinho, com várias crianças repetindo as palavras de Diego: “Ele cortou a sola...”. Logo estavam ao meu redor, todos disparando olhares de julgamento, condenando-me pela imperdoável falha, algo que, certamente, amaldiçoaria a noite de Natal de todos e seria passível de uma terrível punição. Algumas diziam: “Ahm... vou contar pra tia!”. Estranhei aquela reação coletiva, mas comecei a ficar preocupado quando o Sábio Diego pegou a minha bota que eu vandalizara e, segurando com a outra mão o salto (que ele chamava de sola, repito), tentou realizar um conserto. Balançou negativamente a cabeça ao fracassar em sua tentativa e disse que não havia o que ser feito. Devolveu-me os pedaços de papel e, sem proferir outras palavras, e me transmitiu mentalmente, com os olhos emitindo uma pena sem tamanho, a seguinte frase: “É, meu amigo. Te f...eu!”. Claro, ele não falava palavrão, mas emitiu com sua mente algo equivalente para a sua idade e vocabulário. Tremi com aquilo e senti que meu fim estava próximo. “Como eu fui capaz de tamanho erro? O que fiz para merecer isso? O que me espera? Será o meu fim?”.

Tia Milene não reparou em nada e minha bota vandalizada foi pendurada ao lado das demais.

Outra colega que vale a pena mencionar era a Lílian, prima da Luana e, por esse motivo, às vezes nos encontramos em eventos em comum. Além disso, cabe referir que chegamos a ser colegas em um ano na Escola Mãe de Deus. Sinceramente, não lembro muito dela na creche, mas ela foi “Maria”, enquanto eu, “José”, em uma encenação de “O Nascimento de Jesus”, tradicional peça teatral que encerrava a festa de final de ano que a creche sempre realizava no mês de dezembro, que vale a pena ser mencionada, até para encerrar esse capítulo sobre a “Bolinha de Sabão”.

A peça “O Nascimento de Jesus” era um grande acontecimento, o que se justificava por dois motivos. Primeiro, era a “grande” apresentação da festa de fim de ano organizada pela creche, e reunia quase todos os alunos da instituição, que durante o evento haviam apresentado, separadamente, diferentes números. Eu, por exemplo, dancei lambada com alguma colega que não era a Desirée com a desenvoltura de um John Travolta e, em outro momento, mostrei meus dotes artísticos em uma coreografia para a música “Quem não sabe assobiar”, utilizando-me de uma bengala que, diferentemente daquelas empunhadas por meus colegas, todas iguais por certamente terem sido compradas em lojas de fantasia, foi habilmente feita pelo meu avô Roberto Jeolás Machado Guimarães - que além de tantas qualidades, também era um carpinteiro de primeira mão.

Outro fato que tornava a peça “O Nascimento de Jesus” tão importante era que, por reunir todos os alunos da creche, trazia algum status aos seus “atores” de acordo com os personagens que lhes eram escalados. Assim, as criancinhas do maternal eram as ovelhinhas dos pastores; quase todos os alunos que não eram do berçário eram “pastores” (acho que o número de “pastores “se equiparava ao de “ovelhas”); havia três ou quatro alunos que eram os “anjos” que ficavam com os braços estendidos para a frente por intermináveis minutos; claro, também estavam lá os três reis magos (aqui não tinha como “inventar” um quarto rei mago) e, por fim, José e Maria. Jesus era um boneco de plástico.

Aqueles que encenavam José e Maria apareciam durante toda a peça, inclusive com exclusividade durante alguns minutos, de modo que eles recebiam o maior destaque entre todos. Portanto, ser José ou Maria em “O Nascimento de Jesus” seria um grande feito, algo para “lacrar” o final de ano com chave de ouro, para cantar, ao final de tudo, “Turn down for what”, com direito a colocar óculos escuros enviados pelos céus e ser carregado pela galera.

Lembro ter atuado duas vezes em “O Nascimento de Jesus”. Na primeira eu fui um dos anjos e, conforme referi, foi uma tortura, pois eu tinha que manter meus braços estendidos por incontáveis minutos sobre o boneco de Jesus. Nessa tarefa fui acompanhado pelo Edisson e o Matheus, e recordo-me que, em dado momento, exausto, encolhi meus braços, mas mantive apenas as mãos estendidas, passando a me assemelhar muito mais a um Tiranossauro Rex celestial (não ao do filme “Jurassic Park, mas ao personagem “Rex”, da clássica animação “Toy Story”) do que a um anjo. Assim, atravessei o ano seguinte decidido a não mais ser um anjo.

Então, durante o ano de 1990, veio a segunda e derradeira oportunidade, já que, no ano seguinte, eu passaria a estudar na Escola Mãe de Deus. Não me recordo para qual papel eu havia sido escalado, mas “José” seria encenado pelo meu colega William (sobre quem é necessário referir, apenas, que era sempre o último a ser buscado na creche – o penúltimo era eu). Então, um dia, a Tia Cíntia reuniu os alunos e anunciou que William havia adoecido e não poderia participar da peça. Ela perguntou quem gostaria de ser “José”. Ergui meu braço instantaneamente. Embora outros também o tenham feito, fui o mais rápido e ganhei o papel! Foi uma grande felicidade, começando pela “importância” do papel e seu grau de “complexidade” (eu e “Maria” teríamos que, por alguns minutos, andar de um lado para o outro do palco, além de sentarmos bem no meio do cenáculo, sendo o “centro das atenções”). Além disso, a primeira historinha que me foi repetidamente contada pela minha mãe foi justamente essa, a do nascimento de Jesus, um livro de cujas gravuras me recordo até os dias de hoje, de modo que aquela peça era, justamente, a encenação, a versão live action, de uma história tão importante para mim e agradável aos meus ouvidos em meus primeiros anos de vida.

No final, deu tudo certo e a peça foi um sucesso. Não fui carregado pela multidão, não ganhei “Oscar”, “Kikito” ou qualquer outro prêmio, nem dei autógrafos para as colegas, mas fiquei feliz por ter conseguido realizar algo que, na época, representava muito para mim. Não há dúvidas de que foi um grande encerramento da era “Bolinha de Sabão”.

Contudo, a minha história na Bolinha de Sabão não acabou ali, e seu epílogo foi bem mais “trágico”.

Um ano depois, eu estava entediado. Nenhum amiguinho meu estava disponível para ir à minha casa brincar comigo. Minha mãe, então, sugeriu-me passar a tarde na creche com o meu irmão, que ainda estudava na Bolinha de Sabão. Aceitei de bom grado.

Chegando lá, fui recebido como um universitário que visita sua ex-escola na primeira semana de aula, como um cara que passou uma temporada na Europa e agora dispunha de “experiência internacional”, como um veterano que retornou da guerra ou tal qual um astronauta que pisara na lua. Enfim, senti-me como Diego, o Sábio, que, naquele dia, não estava na creche.

A Tia Milene, a professora da creche, ficou muito feliz em me receber. Fiz atividades com os demais colegas, e recordo-me que, em uma delas, recebi uma estrelinha na qual estava escrito “joia”. Ainda não sabia ler, então soube disso apenas quando aprendi, cerca de um ano depois, relendo aquele trabalhinho. Ela me perguntava sobre a Escola “Mãe de Deus”, questionava-me sobre Edisson e Matheus, meus dois amigos que também haviam ido para a referida instituição, além de me fazer constantes elogios sobre como eu era bom no que eu fazia. Ah, como eu gostava da Tia Milene! Fazia-me sentir-me o máximo!

Meus colegas também estavam muito empolgados com a minha visita. Rodeavam-me o tempo todo, faziam-me perguntas, queriam que eu brincasse com eles, enfim, só faltava pedirem-me autógrafos ou, ao menos, que eu registrasse minhas mãos com lama nas costas de suas camisas. Todavia, a minha brilhante “bolinha de sabão”, que refletia a luz do sol e das estrelas mais radiantes, estava em vias de estourar.

No meio da tarde, nos foi oferecido o lanche pela creche. Não lembro o que comi, mas a bebida era suco de maçã natural. Como alguns sabem, dificilmente se consome suco de maçã natural perfeitamente filtrado, sempre havendo aquele “pozinho” da fruta. Muitos não se incomodam com isso, mas eu fico muito perturbado com tal sensação. Apesar do gosto aprazível da bebida, a sensação do “pozinho” no líquido me incomodou muito. Não sei se essa foi a causa do que veio a ocorrer comigo, mas certamente contribuiu.

O fato é que, pouco depois do lanche, senti um rebuliço em meu estômago. Havia algo muito errado, e fui tomado por um enjoo assombroso. Corri para o banheiro, abri a tampa da privada, posicionei-me e: “Uooorgh!. Por pouco minha alma não saiu pela goela. Lágrimas, todo o almoço e o lanche da tarde foram para os esgotos de Porto Alegre. Acho que foram uns três jatos de vômito sucedidos por cuspes para eliminar os resíduos em minha boca. Quando tudo terminou, puxei a descarga, respirei fundo, lavei minhas mãos, meu rosto e enxaguei a boca. Olhei-me pelo espelho e enxerguei um menininho que, embora aliviado pelo fim do mal-estar, parecia um zumbi. De qualquer forma, tudo havia se encerrado e eu retornaria para o pátio para brincar com meus ex-colegas. Entretanto, havia mais.

Olhei para baixo e verifiquei que, ao fazer força para vomitar, urinei-me todo! Minha bermuda bege ficou totalmente escurecida pelo xixi. Não acreditei no que acontecia! Todo o meu glamour seria perdido, todo o meu estrelismo, apagado! O que seria de mim, aquele que fora o grande destaque de “O Nascimento de Jesus” e recebera uma estrelinha abaixo da qual a Tia Milene escrevera “joia”, e que falava sobre mistérios acerca da terra, da água e do ar aos seus ex-colegas que ainda não haviam saído da “bolha” de sabão onde viviam? Não havia opção: eu teria que me fingir de morto!

E foi exatamente o que fiz. Retornei ao pátio, sentei-me sob uma árvore e fechei os olhos. Torcia para desaparecer ou dormir para logo acordar no aconchego e na segurança do meu lar, mas é óbvio que isso não aconteceu, ainda mais considerando o forte calor que fazia. Em questão de segundos, fui rodeado por vários colegas, que falavam repetidamente, alguns em tom de surpresa, outros, de deboche, mas acredito que muitos, especialmente as meninas, de decepção: “O Renan fez xixi nas calças”, ou “Ahm... vou contar pra tia!”. E ela chegou: Tia Milene logo se aproximou e perguntou-me como eu estava. Não lembro o que respondi. Recolheu-me carinhosamente do pátio arenoso com cheiro de cocô de gato, levou-me para dentro da creche, e ligou para a minha mãe. Emprestaram-me uma bermuda do uniforme da “Bolinha de Sabão”, e voltei para casa.

Essa foi a última vez em que pisei na minha antiga creche e que falei com Tia Milene e tantos colegas. A minha última imagem poderia ter sido aquela da festa de encerramento do ano anterior, mas optei por retornar por um dia, que estava sendo maravilhoso, mas teve um fim terrível. De qualquer forma, sobrevivi, e hoje é muito engraçado recordar-me disso.

Comentários

  1. Mais uma vez uma leitura agradável , fácil e interessante de ler. Muito bem humorada e engraçada a narrativa. Quanto aos antigos colegas que nunca mais viste, por que não tenta acha-los no Facebook? Beijo. E continue escrevendo. Te amo!

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