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"A Tábua-Guia" - capítulo I

I
A SOMBRA DE MEHDSEH

Mifon tornou-se um reino fantasma. Ninguém mais habitava a região. Com exceção de uma ínfima minoria que conseguira fugir, todas as pessoas ou foram mortas ou escravizadas na madrugada em que ocorrera a fatídica batalha que culminou no rapto da rainha Ismilla e na morte de Asobrab, seu guardião e até então portador da Espada Ancamung, na qual se depositavam as esperanças de que possuía o poder de destruir a Armadura de Emanon, o que acabou não se confirmando. As riquezas foram levadas em outras expedições, gradualmente, até não restar nada além das cinzas, ruínas e cadáveres que passaram a fazer parte da paisagem do lugar. O porto, situado às margens do Nimisganas, foi arrasado. De acordo com o combinado, Mifon deveria fazer parte do reino orc de Odihnurg, liderado pelo monstruoso Yrrah, que fora muito importante na estratégia armada para arrasar o falecido reino encabeçado por Ismilla. Todavia, Mehdseh, logo após a vitória e os saques, parecia ter mudado de ideia em relação ao acordado com as asquerosas criaturas, algo esclarecido em uma reunião de lideranças envolvendo ele, Yrrah, Regnessem e outros líderes militares do Império Mehdsehico, ocorrida em Odihnurg, no seu imundo e escuro castelo real, cujo interior era iluminado por piras que geravam sombras assustadoras até do mais insignificante inseto.

Odihnurg era um reino mal aproveitado quanto aos seus recursos naturais. Os orcs não gostavam de pastorear ou plantar, preferindo a caça, a coleta e os saques. Por serem muito cruéis, chegando ao ponto de atacarem vilarejos e, em vez de roubarem seus animais ou produtos oriundos de plantações, optavam por crianças e jovens – “carne fresca”, nas suas palavras –, acabaram isolados e perseguidos pelos humanos e outras raças, tornando-se sinônimos de ameaça e repugnância. Visando à sobrevivência, passaram a se organizar em aglomerados, e Odihnurg acabou se tornando o maior e mais desenvolvido de todos. Tratava-se, inicialmente, de uma imensa fortaleza, na qual as fêmeas serviam apenas para reprodução, enquanto os machos tratariam de planejar e atuar em assaltos a regiões próximas, enclausurando “carne fresca”. Quando não conseguiam, devoravam orcs fracos, porém gordos, indicados pelo líder. Centenas de anos atrás, a Fortaleza de Odihnurg transformou-se no Reino Orc de Odihnurg, aglomerando alguns quilômetros ao seu redor, e um ancestral de Yrrah seria o seu primeiro monarca.

Um lugar sujo que cheirava a carniça podre, dominado por criaturas cruéis e nojentas. Essa era a Odihnurg na qual se discutia o futuro próximo da Veliáquia.

A escura sala de reuniões do castelo real era vigiada por horrendas estátuas homenageando as gárgulas de Horukse, a Face das Trevas, e situavam-se nos seus quatro vértices. Entre a cerrada porta de madeira do recinto e a gradeada janela semicircular, em torno da escura e pentagonal mesa de pedra, os referidos líderes – Mehdseh e seu braço-direito, Regnessem, além do anfitrião Yrrah e alguns generais importantes – eram aquecidos precariamente pelas discretas chamas da lareira do lugar, que lutavam para permanecerem acesas graças aos ventos da nevasca que do lado de fora despencava. Por ser uma janela aberta, o vento gelado invadia o ambiente.

Lá, discutiam sobre o que fazer com os prisioneiros mifonenses, a rainha Ismilla, as terras até então conquistadas e o que seria feito dali em diante. Mehdseh, que trajava integralmente a poderosa Armadura de Emanon, gerava um temor constante nos demais presentes, como se uma fera faminta estivesse entre eles, prestes a destruir insanamente aquele que fizesse o mais discreto movimento ou pronunciasse qualquer inocente palavra. A sombria figura bélica daria a palavra final sobre qualquer assunto, e não toleraria nenhum tipo de intromissão, palpite ou, o que seria pior, discordância.

- Não há mais nada em Mifon, grande Mehdseh. Todo o reino, incluindo a sua cidadela, porto e campos, foi saqueado ou destruído. Seu povo jaz naquelas devastadas terras, ao mesmo tempo em que uma insignificante minoria encontra-se aqui enclausurada, incluindo a rainha Ismilla. – relatou Regnessem, sempre vestindo o seu imponente casco vermelho-escarlate, despido de elmo, com sua embainhada espada de dois gumes pendurada em seu cinturão.
- Ismilla. – disse Mehdseh, pronunciando cada sílaba de tal nome com luxúria e cobiça, tomado por um repentino devaneio.
- Tendo em vista que a primeira parte de seu plano, glorioso imperador, está terminada, gostaríamos que dissesse aos seus humildes e humilhados servos, cavaleiros e aliados, qual será o próximo passo de sua legítima expansão. – falou, novamente, Regnessem.

Mehdseh, após suspirar, levantou-se da extremidade mesa situada em frente à janela, deu as costas aos seis que lá estavam com ele – além de Regnessem e Yrrah, estavam os generais representantes dos centauros, dos minotauros, e dois dos humanos aliados às suas forças – e passou a contemplar a fosca paisagem gerada pelos flocos de neve, as nuvens e a natural escuridão da noite. Permitia que o vento balançasse, tal qual uma bandeira estirada no alto de um mastro, a sua grande capa rubro-negra (negra para o lado voltado para fora, e vermelha para o lado das costas). Cada movimento por ele feito era como uma metálica dissonância maldita que amedrontava ainda mais os presentes. Após estufar o peito, disse:

- Indicarei um Conselho Vigilante para Odihnurg, tornando-se esse reino, de hoje em diante, parte do Império da Mehdsehia, assim como a região compreendida entre ele e Mifon, inclusive. Quero que iniciem a reconstrução deste último, e sua imediata ocupação logo após tal etapa.

Antes que Mehdseh continuasse, houve uma inesperada interrupção:

- O quê? Isso não foi o combinado, imperador! Havíamos concordado, em troca do meu apoio irrestrito à pilhagem e destruição de Mifon, além da ajuda na procura pela Espada Ancamung, que Sua Majestade permitiria a nossa independência e o domínio da região entre Odihnurg e Mifon, inclusive! Está quebrando um pacto! – disparou, irado, Yrrah, exibindo seus afiados e podres dentes, contaminando todo aquele recinto com seu pútrido hálito e sua grave e, de certa forma, desafinada voz.

A reação de Mehdseh foi imediata: sacou Ancamung e partiu em dois o peitoral da pesada e enferrujada armadura que protegia o rei de Odihnurg, expondo o seu desengonçado tronco desnudo, no qual surgiu uma discreta cicatriz que ia do seu umbigo até quase o pescoço. Em seguida, falou, imperativamente e num tom de voz assustador:

- Yrrah! Você, assim como todos os orcs, não passa de uma criatura desprezível e subdesenvolvida física e mentalmente. Não tem moeda para negociar comigo. Agora que visto a Armadura de Emanon completa, não há ser no mundo capaz de se opor a mim e às minhas vontades. Portanto, quebro aquilo que você chamou de “pacto”, e ordeno que me obedeça. Do contrário, irei dá-lo como alimento aos demais orcs, os quais o devorarão vivo, pois esse será o meu desejo. Logo, curve-se perante mim e jure, humilhado, que me seguirá sempre, usando seu poder de liderança com os orcs para satisfazer àquilo que eu quiser! E peça perdão pelas suas palavras!

O rei dos orcs sentiu o medo penetrar no fundo de sua alma. Com a voz trêmula e embargada pelo tilintar dos seus dentes, Yrrah, ajoelhado e humilhado, pediu perdão. Em seguida, voltou para o seu lugar na mesa e não mais ergueu a cabeça naquela reunião ou sibilou qualquer palavra.

Após breve instante de um silêncio que só não era absoluto devido aos uivos dos ventos e do crepitar do fogo da lareira, o imperador prosseguiu com a sua exposição de planos.

Alguns dias depois, Mehdseh chamou para uma conversa reservada Regnessem, naquela mesma sala onde ocorrera a reunião. A neve ainda caía forte, sendo ela o motivo do não-avanço imediato das tropas do imperador aos destinos traçados. Sentado em uma das pontas da mesa de pedra, de frente para a porta de acesso ao local, o usuário da Armadura de Emanon deu uma ordem inesperada ao seu cavaleiro de confiança:

- Regnessem! Você sabe que eu nunca casei, e que é preciso um herdeiro legítimo para suceder-me na eventualidade da minha morte. Nunca encontrei nenhuma mulher que me motivasse a procriar, muito menos casar. Contudo, quando penso na rainha Ismilla, tão linda, imagino que poderia plantar nela a semente da minha dinastia, da qual se originaria uma criança bela e com um espírito real e imperial pronto. Diante disso, ordeno que apronte tudo para o meu casamento com Ismilla, que será a minha imperatriz!
- O senhor está certo disso, imperador? – perguntou Regnessem, sem erguer a cabeça para não parecer que contrariava seu senhor.
- Acha que eu brincaria com um assunto sério desses, cavaleiro? –disse Mehdseh.
- Não, senhor! Jamais! Dê-me detalhes de seu desejo, imperador, para que tudo seja feito conforme a sua vontade.
- Muito bem. Meu desejo é casar amanhã, logo depois do pôr-do-sol. Será algo reservado, aqui mesmo, no castelo de Yrrah.
- Sim, senhor! Providenciarei o necessário imediatamente, mas permita-me fazer uma pergunta, imperador: que sacerdote legitimará essa união? O senhor exterminou todos os sacerdotes e...– questionou Regnessem.

O imperador, assim como fizera com Yrrah, sacou muito rapidamente Ancamung, e pressionou-a contra o pescoço de seu cavaleiro:

- Fale apenas o necessário, e essas suas palavras rompem esse limite, Regnessem. Reserve-se a fazer apenas o que lhe ordenei!

A voz grave de Mehdseh, unida à ameaça real feita pela poderosa Espada Ancamung, quase fez Regnessem desmaiar de medo. O simples fato de conversar com o seu senhor, além de vê-lo, já apavorava o usuário da famosa armadura escarlate, o qual sempre presenciara e, de certa forma, apoiara as atrocidades de seu mestre. Não queria fazer parte da lista de desgraçados que sucumbiram perante seu maligno poder. Gaguejando, pediu desculpas e retirou-se do local.

Mehdseh embainhou Ancamung e deixou a sombria sala. Caminhava a passos largos, o som das juntas metálicas de seu traje ecoavam pelos corredores do castelo real do reino dos orcs. Dirigiu-se ao salão central do lugar, cuja distância entre o chão e o teto era de, no máximo, quatro metros de altura. Encostadas nas paredes havia algumas colunas carentes de ornamentos. Inexistiam janelas naquela parte do castelo, mas apenas pequenas aberturas que serviam para liberarem a fumaça gerada pela imensa lareira situada exatamente no centro do salão, responsável pela pouca iluminação do ambiente. O trono de Yrrah, localizado em frente à lareira, no alto de um púlpito não muito elevado, distante seis degraus do chão e encostado em uma das paredes, estava vazio – o rei de Odihnurg já dormia em seu quarto. Vez que outra, um guarda passava pelo salão, geralmente um orc nativo e, com menos freqüência, alguém da tropa do usurpador da Armadura de Emanon. Parado em frente às solitárias chamas, integralmente protegido pelo poderoso casco, Mehdseh percebeu que não estava sozinho.

Olhou abruptamente para trás, mas tudo o que vira foi a sua sombra reproduzida na parede. Em seguida, sentiu passar pelas suas costas um vulto. Olhou novamente, mas apenas o vazio parecia cercá-lo. Inquieto, sacou Ancamung e ordenou:
- Seja quem for, apareça!

Poucos instantes depois, uma gargalhada maligna começou a tomar conta do ambiente. Ela parecia penetrar no fundo da alma de Mehdseh, enchendo-o, surpreendentemente, de medo. O imperador não admitia estar naquela situação, na qual parecia um cordeiro vigiado por um astuto lobo. As gargalhadas tornavam-se mais intensas e histéricas, e seu som não tinha procedência, como se milhares de seres invisíveis estivessem ao redor do poderoso imperador, zombando-o. De repente, elas cessaram, reduzindo-se a uma só, advinda da entrada do salão, do lado oposto ao púlpito do trono de Yrrah. Em meio ao breu e à inconstante luz das chamas da lareira, uma figura sombria começou a se aproximar de Mehdseh. Era mais baixo que o imperador, caminhava lentamente e com alguma dificuldade. Mantinha seu rosto parcialmente coberto pela escuridão, era um pouco curvo e vestia uma túnica negra, em cujo peito estava bordado, em vermelho-sangue, um brasão assustador, representado por um ser estranho, agachado sobre um crânio. Esta criatura demonstrada no brasão tinha um corpo de ser humano, mas asas de morcego e chifres de búfalos. O fundo da gravura eram as trevas do seu traje. Então, o homem parou de rir e começou a falar, um timbre cavernoso, irônico e confiante:

- Saudações, Redael Dabyrev, o Mehdseh!
- Quem é você? Como ousa aproximar-se de mim desse modo zombeteiro? – perguntou, nervoso, Ancamung empunhada com as duas mãos, apontada para o inesperado visitante. – Saiba que, se eu quisesse, agora você já estaria morto!
- É verdade. O senhor veste a mais poderosa armadura do mundo, considerada por muitos como indestrutível e que lhe concede incríveis atributos, assim como empunha a espada mais perfurante e afiada. Trata-se de um ser praticamente invencível. Contudo, após a minha apresentação, você irá querer a minha companhia quase que por todo o tempo – falou o homem que, em seguida, puxou o seu capuz e expôs a sua envelhecida face, cheia de rugas e cicatrizes. Tinha olhos verdes, pele branca como leite e era totalmente calvo. Seu irônico sorriso era acompanhado por amarelos dentes, todos consumidos pelo tempo. – A Armadura de Emanon recebeu a bênção de um sacerdote de Horukse na época em que ela foi forjada. Foi isso que a tornou viva, quase que dotada de uma vontade própria e, acima de tudo, um instrumento de poder da escuridão. Agora, tantos séculos depois da sua primeira investida para expandir as trevas pelo Continente Sagrado, ela me chama para auxiliá-la na sua segunda e derradeira tentativa.
- Você é...
- Doo Mao, o último sacerdote da Ordem Sombria de Horukse. Você precisa de mim para dominar a Veliáquia.

Dessa vez, quem começou a rir foi Mehdseh, que já se encontrava menos tenso do que instantes antes. Após a gargalhada, o imperador, com a coragem recuperada, falou:

- Como ousa dizer que eu preciso de você para dominar a Veliáquia? Nada é capaz de me deter desde o momento em que eu consegui completar o conjunto da Armadura de Emanon e empunhar a Espada Ancamung – falou, com desprezo e orgulho em seus olhos, enquanto mirava seu traje e sua arma.
- É mesmo? Então, responda-me: será que a sua armadura é, de fato, invencível? Você acha realmente possível que não exista nada, nada mesmo, capaz de detê-la?

Mehdseh não respondeu. O elmo que utilizava escondia a tensa expressão que revelava uma inquietante dúvida. De fato, ele sabia que algo ainda ameaçava o seu poder aparentemente intocável, mas não fazia a menor ideia do que poderia ser.

- Você não sabe, mas está consciente de que ainda há essa ameaça, correto? E o que fará para combatê-la? Vamos, responda-me o seguinte: por que Emanon, no passado, quando vestia a dita mais poderosa armadura da existência, livrou-se dela, culminando no abandono dos seus aliados da Ilha dos Andarilhos Mortos e, por fim, na sua derrota?

O imperador estava confuso. Pouco antes, resolvera casar-se com Ismilla, ordenando a Regnessem que aprontasse tudo. Depois, enquanto circulava pelos escuros corredores do castelo real de Yrrah, fora surpreendido pela sombria e impetuosa figura anciã de Doo Mao, que se apresentava como o último sacerdote de uma ordem religiosa tida como extinta desde a Guerra Total, na Era Emanônica. Fora provocado por interrogações inquietantes do sacerdote. Desacostumado a tal situação, Mehdseh resolveu arrancar a cabeça daquele insolente que estava na sua frente, mas, de certo modo, não conseguia. Parecia que a armadura concordava com Doo Mao e reprimia a vontade de seu usuário. Mesmo assim, o imperador não aceitaria tal petulância.

Mehdseh ergueu Ancamung e atacou o dito sacerdote da Ordem Sombria de Horukse. Contudo, assim como ocorrera com Asobrab quando este empunhava Ancamung e atacara Mehdseh, a ofensiva fracassou. Antes que atingisse o então inimigo, a espada começou a pesar mais do que uma bigorna, obrigando o imperador a soltá-la.

- Eu não entendo! Não consegui agredi-lo, assim como aconteceu quando Asobrab empunhava Ancamung e fracassou na tentativa de atacar-me! No entanto, estou trajando a Armadura de Emanon, e ela não deveria me abandonar!

Doo Mao apanhou Ancamung do chão, devolveu-a ao imperador, e falou:

- Imperador Mehdseh, o senhor não conseguiu atacar-me porque eu, assim, como você, sou parte do plano de Horukse. Não é a espada que se recusa a atacar, ou a armadura que abandona o corpo daquele que a usa, mas é Horukse quem descarta ou conduz seu arauto. Da mesma forma quanto a mim.
- Como assim “quanto a você”? Explique-se! - perguntou Mehdseh.
- Claro, claro. A Ordem Sombria de Horukse, ao contrário do que muitos pensam, nunca foi extinta, mas tornou-se simplesmente mais discreta depois da última Guerra Total, a Guerra de Emanon. Não existia da mesma maneira que a Ordem Eternalista, mas como uma sombra desta. Reduziu-se a um número cada vez menor de seguidores, até o ponto de praticamente não restarem mais sacerdotes. Eu sou o último deles, assim como o era o meu mestre, e fora o mestre do meu mestre, e assim por diante. Já faz tempo que existe uma linhagem única de sacerdotes das sombras, e a razão disto é que não deveríamos, de maneira alguma, chamar qualquer atenção, de modo que estivéssemos prontos, preparados e disponíveis quando houvesse “o chamado”.
- “O chamado”? – interrogou-se Mehdseh.
- Sim. Falo do chamado da Face das Trevas. Contam os escritos da Ordem Sombria que Horukse não perdeu a guerra anterior, protagonizada por Emanon, mas apenas recuou para avançar em um momento mais propício. Esse momento chegou, e seu marco foi a reunião de todo o conjunto da armadura forjada por Emanon. Imperador Mehdseh, quando o senhor derrotou o último Guardião, Asobrab, e usurpou Ancamung, ouvi “o chamado” de Horukse, que me conduziu até aqui.
“A Armadura de Emanon é o instrumento para a expansão de Horukse pela Veliáquia. Ela dá poder e força a quem a usa, mas é necessário que eu esteja junto nessa expansão para que a finalidade da armadura seja plenamente alcançada: dedicar cada terra e criatura conquistada à Face das Trevas! Reitero, portanto, que o senhor precisa de mim. Você é o arauto de Horukse, Mehdseh, mas eu sou seu sacerdote e a sua sombra!”
- E se eu não quiser dedicar essas terras a Horukse? Eu não precisaria de você...
- Ninguém é capaz disso. A armadura escolhe a dedo seu usuário, e a cobiça que ela gera é justamente a cobiça que Horukse tem pelo poder. Se a cobiça permanece, o poder de Horukse ainda envolve quem usa a armadura a ele dedicada e responsável por dar o poder para dominar a Veliáquia. Se você me ignorar, estará ignorando indiretamente a Face das Trevas que lhe capacita para satisfazer a sua cobiça.
- Então, o que você pede é que eu permita o seu auxílio?
- Exato, imperador. Essa é a vontade da Armadura de Emanon, como o senhor já pôde notar. Eu apenas usarei meus poderes para que Vossa Excelência cumpra aquilo que lhe fora designado pelo seu senhor. Vossa Excelência é a conquista de Horukse, e eu serei a consagração desta conquista.
- Eu não tenho senhor! – esbravejou Mehdseh.
- Ah, tem sim, imperador. Creio que isto já esteja suficientemente claro. De qualquer forma, não sou eu o seu senhor, mas aquele a quem idolatro. Mesmo assim, como o senhor é o escolhido pela Face das Trevas, o preferido, o consagrado para conduzir as sombras de Horukse a cada canto da Veliáquia, curvo-me diante da sua vontade e do seu poder - anunciou Doo Mao, que ajoelhou-se, em seguida, diante do imperador, e curvou sua cabeça.

Mehdseh odiava aquele sacerdote petulante, mas seu poder era inegável, afinal, conseguira passar, de maneira inexplicável, por toda a segurança de Odihnurg e emanava uma energia estranha, maligna e potente, capaz de impedir que o próprio imperador, mesmo trajado com a mais poderosa armadura e empunhando a espada tida como invencível, o atacasse. Suas palavras eram persuasivas e, ao que parecia, não restava alternativa senão confiar em Doo Mao. Mesmo assim, algo deveria ser feito:

- Doo Mao, sacerdote de Horukse: você jura lealdade a mim, em nome da Face das Trevas? – perguntou Mehdseh, apontando Ancamung para a cabeça daquele que de joelhos se encontrava.
- Sim, imperador! Se a Face das Trevas escolheu Vossa Excelência como seu imperador, assim o reconheço e curvo-me diante de sua vontade. Juro auxiliá-lo em seus desígnios, em prol da sua glória e da Face das Trevas!

Satisfeito, Mehdseh deu as costas a Doo Mao e ordenou que se levantasse. O imperador tratou de sentar-se no trono de Yrrah, em frente à grande lareira que esquentava o ambiente sombrio onde se encontrava, enquanto, de pé, postou-se, ao lado dela, o sacerdote.

- Você me perguntou, Doo Mao, se eu me questionava sobre o que levou Emanon, na iminência do choque definitivo de forças da última Guerra Total, a se livrar da invencível armadura que forjara e determinar a ocultação de cada uma das suas respectivas partes, separadamente. Pois bem, sacerdote, eis a minha resposta: eu não tenho ideia, e temo por essa insanidade. O que você me diz a respeito? O que a armadura teme? Ou Horukse?

As sombras da lareira e a inconstante luz dela emanada tornava ainda mais sinistra a figura de Doo Mao, que parecia um fantasma que ora aparecia, ora desaparecia, de acordo com a dança das chamas. Seu aspecto horrível e sorriso irônico era um incômodo ao imperador, mas este já começava a se acostumar com seu novo servo. Percebia que aquele aparentemente poderoso homem poderia ser, de fato, muito útil para a expansão pela Veliáquia. Doo Mao sorriu, fazendo Mehdseh crer que era exatamente esta pergunta que aguardava.

- Existe um artefato muito poderoso, mas cujo paradeiro é conhecido por apenas uma pessoa. Se nossos inimigos puserem as mãos nisto, Horukse poderá recuar mais uma vez e, então, eu, o senhor e todos aqueles que estiverem sob a proteção das sombras, sucumbiremos, tal como aconteceu no passado, com Emanon. Precisamos, portanto, ir à Segnom, onde vive aquele que detém esse segredo, e obrigá-lo a revelá-lo para nós.

Então, diante da dança das chamas da grande lareira, única testemunha daquela conversa, Doo Mao disse a Mehdseh do que se tratava o artefato.

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