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Tão Injusto Sofrimento

Eu havia deitado antes da meia-noite, mas não conseguia parar de pensar nos gols que o time para o qual eu torço havia tomado horas antes e que culminaram na sua eliminação do campeonato. Outro ano passaria em branco e eu, novamente, não gritaria "é campeão!". Olhava para o teto do meu quarto e perguntava para Deus, com raiva e tristeza: "por que essa injustiça?". Já passara das duas da madrugada e eu ainda rolava de um lado para o outro da cama, quando enfim peguei no sono. No entanto, quatro horas de repouso são pior do que virar uma noite inteira acordado. Foi como piscar os olhos e, em seguida, levantar. Minha cabeça latejava, e as imagens do fracasso futebolístico da noite anterior voltavam à minha mente, misturando-se com as remelas de meus olhos. Calcei meus chinelos e fui tomar o café da manhã.

Enquanto bebia um café com leite quente e comia um farto sanduíche, tratei de ler um pouco do jornal. Na capa, a manchete tratava de nova denúncia de corrupção envolvendo membros do alto escalão do governo, mas não perdi tempo e fui conferir o que anunciava a contracapa. Apesar do grande destaque dado para a reportagem que falava sobre o aumento do desemprego no país e a crise econômica mundial, tudo o que me chamava a atenção era a pequena chamada mencionando a grande tragédia da noite anterior: a derrota que retirara o meu sono. Abri o jornal e tratei de procurar o caderno de esportes. Ele estava antes do obituário que convidava para o sepultamento de um jovem de vinte e dois anos que falecera no dia anterior, vítima de um acidente de automóvel, e depois da página policial que relatava o homicídio de uma menina viciada em crack pela própria mãe. Enfim, separei o caderno de esportes e comecei a lê-lo, sofrendo com aquela catástrofe que tornara o meu amanhecer mais cinza que o normal.

Encerrado o desjejum, escovei os meus dentes, tomei um banho quente e vesti o meu terno. Despedi-me da minha namorada com um beijo, assim como dos meus pais e do meu irmão. Peguei o meu carro e fui trabalhar. No caminho, escutava ao rádio e às notícias por ele veiculadas, ainda lamuriando-me pelo terrível e injusto golpe que eu sofrera na noite anterior. Depois de ouvir sobre um terremoto que destruíra durante a madrugada quase que um país inteiro, resolvi mudar de estação enquanto noticiava-se a ocorrência de um ataque terrorista que arrasara todo um quarteirão de uma cidade africana. Resolvi desligar o rádio depois de sintonizar em uma estação que falava sobre as condições de vida em que se encontravam os moradores de uma vila de Porto Alegre, cujas casas, segundo a notícia, estavam firmadas sobre montanhas de lixo. Achei estranho estarem falando tão pouco ou nada acerca da terrível eliminação do meu time. "No que eles estão pensado?", refleti, em tom interrogativo.

Cheguei atrasado ao trabalho. Um atropelamento com morte tornara o tráfego lento em grande parte do meu percurso. "Maldição!", exclamava comigo mesmo. Depois de uma noite catástrófica como aquela, ainda me atrasava graças ao trânsito engasgado da cidade. Eu não poderia ter um começo de dia pior. Depois de deixar meu carro no estacionamento, caminhei meia quadra até o edifício do meu trabalho. No caminho, enquanto seguia me lamentando pela sina de não ver meu time campeão há anos, quase tropecei em um mendigo que dormia camuflado por muitos pedaços de papelão umedecidos pelo orvalho da madrugada. Recuperado do susto, tornei a pensar em alguma solução para os seguidos problemas defensivos que ficaram expostos no meu time na queda que tanta infelicidade gerara para o meu coração.

Minutos depois, já estava na minha sala, a qual divido com vários colegas. Algumas piadinhas dos torcedores do time rival deixavam-me transtornado por dentro, mas consegui me controlar. Pude compartilhar minhas lamentações com outros colegas e desabafar sobre aquele sofrimento pelo qual passávamos. Tamanha dor não era justa. Eu não merecia sofrer tanto. Alguma providência deveria ser tomada: troca de dirigentes, de treinador, de jogadores. O que não poderia continuar era aquele sofrimento. Tão injusto sofrimento.

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