Vamos falar de pandemia. Opa, você já está de saco cheio dessa história? Ah, sim, como passou o inverno e chegaram as eleições municipais e as dos Estados Unidos, então deveríamos focar em tragédias mais altivas, e não de uma doença que, embora curável, tira muitas vidas (ou afunda no mesmo barco de vidas já perdidas). Quer saber? Vamos falar dessa tempestade, sim.
Preste atenção no que eles dizem e diziam lá no início: “fique em casa”. Com hashtag e tudo mais. Feche-se no seu mundo e alimente a esperança recheada com hipocrisia que eu vendo para você todos os dias, e lembre-se que o que você entende como felicidade, que geralmente é estar com a família e os amigos, é nada mais do que uma mentira, nunca uma salvação. O importante é beber esse seu vinho premiado e mostrar para o mundo que, mesmo em casa, você ainda tem dinheiro.
Claro, quando a floresta pegar fogo, aglomere-se e proteste, peça sanções internacionais contra você mesmo, abrace os outros manifestantes, mas não esqueça as máscaras, de preferência aquelas para gás lacrimogênio, afinal, estamos em meio à pandemia, ora bolas. Fora isso, fique em casa! Se os animais nas jaulas conseguem, você também conseguirá! Só saia se for para gritar contra governos tirânicos que defendem o livre funcionamento das atividades econômicas e a circulação de pessoas em seus países, incendiar igrejas, fazer campanha para candidatos, clamar pela natureza calçando seus tênis fabricados na China em um local certamente insalubre e vedado a qualquer fiscalização internacional. Agora, se você só quer algodão-doce na orla do Guaíba, no entardecer de domingo, com a família, então, meu amigo, vou denunciá-lo por promover “aglomeração”. Um genocida, praticamente. Não tenha uma opinião patética: o que vale é ter prudência e ficar em casa, mesmo quando tiver febre. Se ela não passar em um ou dois dias, quem sabe eu chame uma ambulância pra você?
Não venha me dizer que é complicado estar só. Com internet, Netflix, home office e o noticiário se solidarizando com cada morte, todos os dias, em nosso país, quem está realmente sozinho? Ah, e não se esqueça de que não é permitida uma despedida: caixão lacrado, poucas pessoas e aguente firme! Lembre-se que nem tudo é solidão, afinal, você tem centenas, ou milhares, de amigos nas redes sociais, todos à disposição para profundas chamadas de vídeo. Perigo mesmo é o abraço da família e dos amigos. Mantenha-se afastado deles! Caso contrário, uma “aglomeração” poderá se formar e, então, nesse dia, quem sabe eu chame uma viatura pra você?
É preciso acreditar numa vacina, preferencialmente a chinesa, e usar a máscara sem questionar, talvez para sempre, e não se importar em ficar em casa na segunda, na terceira, na décima onda da pandemia. Se agir diferente, se pensar diferente, então você contribuirá para uma grande geração de vidas perdidas, não estará pensando nos meninos e meninas, preferindo a estúpida esperança firmada na fé, como a de um druida senil agarrado em seus trevos de quatro folhas.
Você me responde que quer viver e que está vivo ainda, mas lembre-se de que a escuridão ainda é pior que a luz cinza emitida pelas telas. Fique em casa bem quietinho e foque nas informações verdadeiras e checadas que vêm da TV, do computador, do celular. Para não se distrair, apague a luz do teto, aquela lâmpada incômoda que fica sobre a sua cabeça. Quem sabe um dia eu a acenda para você? Quem sabe um dia eu deixe você decidir o que fazer? Quem sabe um dia eu permita que você trabalhe em paz e honestamente para sobreviver? Quem sabe um dia eu não o julgue por seus amigos e familiares você querer abraçar, beijar e ver? É o “novo normal”, meu caro: viva livremente como e com quem quiser, mas apenas quando eu, um dia, disser que tudo estará seguro para você.
* Paródia de Natália, canção de Legião Urbana, letra de Renato Russo.
** Por via das dúvidas, explico: essa crônica é irônica...
Imagem: https://www.elsevier.com/connect/covid-19-and-loneliness-can-we-do-anything-about-it
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