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CAVALEIROS DA VIRTUDE #4: PAZ E MISERICÓRDIA

 


Qual o Cavaleiro do Zodíaco mais polêmico? Aliás, o que torna algo polêmico? A polêmica está naquilo que motiva um debate, e os debates só acontecem se há divergências sobre algo. Porém, nada é mais injusto do que as polêmicas relativas a Shun de Andrômeda, as quais acabam por ocultar as virtudes refletidas pelo personagem.

 Quando eu era criança, poucos queriam ser o Shun nas brincadeiras, não pelas supostas polêmicas relativas ao personagem (que poderão ser exploradas em uma crônica própria, em outro momento), mas, especialmente, porque ele era o “chorão” da turma e, no aperto, frequentemente gritava “Ikkiiiii!”, como se fosse incapaz de derrotar os inimigos por conta própria. Ele não refletia o arquétipo do herói “macho alfa” encarnado nos outros quatro. Shun era diferente.

 Shun sempre tentou evitar “lutas sem sentido”. Quando a pancadaria estourava, em vez de atacar, fazia uso da clássica “corrente circular”, e suas agressões geralmente se davam como um contragolpe. Eis, então, a primeira virtude promovida pelo irmão de Ikki: a paz.

 O que é “paz”? É estar de boa com todo mundo? É apanhar e não reagir? É não promover a guerra? Trata-se de uma palavra de difícil definição, mas, assim como “liberdade”, ainda que seja duro explicá-la, todos sabemos quando não a temos. Talvez a resposta esteja justamente na relação entre essas expressões, ou seja, a paz verdadeira não está na ausência de conflitos, mas em sua manutenção se o preço não for a perda da liberdade. Chamberlain quis a paz, mas teve a guerra, pois a paz que se propôs a manter, segundo Churchill, era vergonhosa, afinal, implicava em permitir a expansão de um movimento que asfixiava a liberdade e não pararia até que esta desse o último suspiro.

 Shun queria a paz, mas estava ciente do que defendia. Ele sabia que seus adversários buscavam promover a opressão e a injustiça. Por outro lado, toda tirania busca estabelecer uma pax . A diferença é que a tirania, em nome da paz, ataca a liberdade. Portanto, essa paz vem de uma árvore envenenada, é podre. Já a estabelecida por meio da manutenção da liberdade é genuína, pois construída a partir da busca pela verdade, a qual só é possível entre pessoas livres para pensar e falar. Se a paz é encontrada durante a desimpedida busca pela verdade, então ela, certamente, estará mais próxima dessa verdade e, assim, será mais verdadeira do que a imposta pela força.

 O Cavaleiro de Andrômeda é um defensor da paz, mas, acima de tudo, da liberdade dos seres humanos, dispondo-se a não só se proteger, mas a contra-atacar para defendê-la dos opressores enviados pelos deuses inimigos. Para isso, Shun nunca mediu esforços e sempre revelou um poder incrível. Lembrando que a deusa a que ele serve é Atena, deusa da guerra justa e da sabedoria, e não há guerra mais justa do que aquela que defende valores que espalham pela terra sementes que frutificam, e não venenos que matam. A paz sempre será defendida, mas se o preço for acorrentar a liberdade em favor de uma tirania, se for oferecer a um monstro aquilo que nos é mais precioso para arrefecer sua fúria, ainda que injusta (como nos ensina o próprio mito de Andrômeda), então deve essa paz ser convertida em guerra, pois o monstro da tirania é insaciável. Não há paz se o preço for a escravidão.

 Outra virtude promovida por Shun é a misericórdia. Misericórdia é dar ao outro aquilo que ele não merece. Logo, misericórdia é um meio para um fim. Um ladrão pode não merecer ajuda para pagar uma dívida, mas quem o faz é, com ele, misericordioso; o mentiroso compulsivo e sem escrúpulos não é, em princípio, digno de ser auxiliado para provar a verdade de algo que realmente aconteceu, mas a testemunha que se oferece para auxiliá-lo, conhece a verdade e sabe que a versão do enganador, nesse caso, é real, o faz por misericórdia.

 Shun é o mais misericordioso dos Cavaleiros, pois ele perdoa Ikki, que tentou lhe matar sob uma acusação injusta, atacou seus amigos e passou a servir àquele que buscava subjugar o mundo por meio de uma tirania. O faz gratuitamente, sem esperar algo em troca, uma palavra de arrependimento, uma mudança de postura do Cavaleiro de Fênix, nada. O faz mesmo que o irmão não mereça. O faz por misericórdia.

 A misericórdia de Shun por Ikki é tanta que chega ao ponto de o Cavaleiro de Andrômeda, ele próprio, pedir perdão ao irmão por ele ter ido, em seu lugar, para o treinamento na Ilha da Rainha da Morte, algo que não pedira, não exigira, pelo que sequer chorara. Ikki se ofereceu porque quis. Logo, Shun, em um ato extremo, por meio de seu pedido de perdão, sacrifica o seu próprio ego, aceita, sobre si, uma acusação injusta, para que Ikki compreenda que o irmão mais novo genuinamente o aceita como ele é, clamando, tão somente, para que ele abrisse os olhos para a verdade, para o lado correto da batalha. Não se trata, aqui, de uma exigência, pois o ato de misericórdia (perdão) já foi oferecido e dado gratuitamente, cabendo ao recebedor fazer bom uso, ou não, disso. Há, apenas, a torcida para que essa atitude servisse como uma chave para abrir o coração de Fênix. A misericórdia pode ser dirigida a todos, o que não significa que seus destinatários se tornarão virtuosos. O misericordioso, como Shun, não faz essa cobrança, não espera por isso. Simplesmente o faz.

 Alguém não merece misericórdia? Shun, em seu confronto contra Lune de Balron, o inflexível Espectro de Hades que se apresenta como juiz dos pecados cometidos pelas pessoas, ao ser confrontado pelos erros de sua vida, diz: “Você acha, realmente, que existe alguém no mundo que consiga viver sem nunca ter feito nada errado na vida?”. Esse é o ponto de partida do misericordioso: a percepção de que todos erram, erraram e certamente errarão na vida, especialmente com os outros. Shun, antes de ser misericordioso, é empático e sabe que a grande maioria pode fazer bom uso de uma segunda chance, ainda que, aparentemente, possa, em princípio, não merecê-la.

 Claro, a salvação não está na misericórdia, mas no reconhecimento de que se foi contemplado por um ato misericordioso movido por valores fundamentais e supremos e, então, fazer deles uso para uma emancipação a partir do arrependimento. Jesus perdoou a mulher adúltera, mas lhe disse, em seguida: “Vá e não peques mais” (Jo 8:1-11). Ela teve o seu perdão sem merecê-lo, gratuito, sem a exigência de uma obra para obtê-lo, mas lhe foi apresentado o caminho certo para seguir adiante a partir de então. As coisas passadas ficaram para trás, mas ela sabia para onde deveria ir. Seguir ou não pela estrada virtuosa era uma escolha sua, assim como foi para Ikki, que optou pelo bem em vez do mal a partir do misericordioso perdão do irmão.

 Vejam a riqueza da jornada de Shun, o pacífico e misericordioso!

 E então? Vocês identificam outra virtude digna de destaque promovida pelo Cavaleiro de Andrômeda? Comentem!

*Imagem: https://saintseiya.fandom.com/pt-br/wiki/Shun_de_Andr%C3%B4meda

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