Tenho escrito sobre “Os Cavaleiros do Zodíaco”
(CdZ) nos últimos tempos, uma obra que, depois de vários anos de spin offs e continuações canônicas, passou
a ser “revisitada”. Começou em 2014, com o terrível “Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário”, mas o verdadeiro
remake da série, lançado em 2018 pela Netflix, foi assustador, e digo isso por
dois motivos: a desidratação do anime, que perdeu a dramaticidade do original,
tornando os personagens menos profundos do que um pires de cafezinho, e a
alteração do gênero do Shun, que virou “Shaun”.
Sobre Shun, a pergunta “será que ele é?”
sempre me pareceu boba, pois a resposta, para mim, era muito óbvia. Embora a
série original não contivesse personagens abertamente homossexuais, tinha
aqueles que podíamos apontar de forma bem objetiva como efeminados (para os
padrões da época, pelo menos), casos de Misty de Lagarto e Afrodite de Peixes, por
exemplo, considerando seus trejeitos e características físicas. Shun tinha alguns
elementos que eram pejorativamente associados a uma eventual feminilidade, como
sua sensibilidade, o gênero de sua constelação (Andrômeda) e a cor da armadura.
Porém, nunca houve qualquer indicativo na construção do personagem que pudesse
apontar para a sua “orientação sexual”.
Talvez o suposto fator que mais pudesse apontar
para essa tendência tenha sido a calorosa reanimação que ele faz em Hyoga depois
que o Cavaleiro de Cisne é libertado do esquife de gelo. Contudo, ali, Andrômeda
não fez nada mais do que qualquer um faria para salvar um amigo naquelas condições.
Sim, foi um ato de amor, mas de um amor philia,
o amor amizade, como o existente entre Frodo e Sam em “O Senhor dos Anéis”, por
exemplo. Isso é tão claro e evidente que apenas aqueles que querem enxergar de
forma distorcida tal evento conseguem perceber algo distinto do que efetivamente
foi feito: um sacrifício em prol do próximo.
Mais tarde, a “resolução do problema” por
parte da Netflix acabou desidratando o herói, pois retirou de um homem,
colocando-as em uma mulher, virtudes elementares para qualquer pessoa, as quais
não devem se limitar ao gênero de quem as promove. De qualquer forma, seguindo
a lógica da construção dos personagens, seja no mangá ou na série, me parece
evidente que Shun não era gay, muito menos alguém que deveria ser convertido à
mulher, como o foi, em um remake. Aqui, é bom lembrar que ele também tinha a
sua “namoradinha” (June), e sua relação com ela sempre foi platônica em toda a
série original, como igualmente foram as de Shiryu e Shun-rei, Seiya e Mino (e
Shina, e Saori...), Ikki e Esmeralda, e Hyoga e Freya (e Eiri). No original de
CdZ, há essa preocupação com “parzinhos”, há um padrão, e Andrômeda está nele.
Além disso, a suposta falta de diversidade e “machismo”
em CdZ é até explicada pela “cultura” existente no universo da série, em que as
Amazonas de Atena sequer podem exibir seus rostos. Seria algo como fazer um
filme sobre o Talibã, passado em uma comunidade do Talibã, mas com mulheres sem
burca e ativas na sociedade. Em nome de uma cartilha, mente-se,
descontextualizando todo o ambiente em que se passa a série.
O fato é que essa suposta incerteza sobre o
personagem assombrava suas merecidas luzes sobre as quais abordamos na crônica
sobre as principais virtudes promovidas pelo irmão de Ikki, a paz e a misericórdia.
A conversão de Shun em Shaun foi um equívoco total, estigmatizando características
tão ricas de um personagem como femininas e se revelando nada além do que um atendimento
a uma cartilha, um movimento puramente ideológico e desprovido de preocupação
artística, retirando a espontaneidade da obra.
Enfim, me parece evidente que Shun “não é” e “nunca
foi”, e a pergunta que sempre gerou polêmicas simplesmente enuvia a riqueza do herói
e foi equivocadamente respondida no remake. Mais do que diversidade, seria interessante
ou pertinente ter aumentado ou, ao menos, não reduzido a profundidade deste e
dos demais personagens, algo em que a versão original de CdZ acertava em cheio.
*Imagem: https://maiorqueopeloponeso.blogspot.com/2019/07/cavaleiros-do-zodiaco-do-ocidente-ao.html
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