Em vez de ser despertado
pelos primeiros parabéns do alvorecer, o que escutei foram gemidos. Minha
esposa disse que sofrera com dor por toda noite. Eram as contrações, estavam
fortes. Senti um frio na espinha, a ansiedade me consumiu e pensei: “Ela vai
nascer no dia do meu aniversário!”.
Horas depois, a obstetra, em
consulta, revelou que sequer havia dilatação e que aquelas contrações eram
meros “treinos”, os tais prodromos, pois ainda separadas por períodos
relativamente longos, mas que deveríamos ficar atentos. O dia passou, meus pais
conseguiram jantar conosco e deu para assoprar uma velinha pelos meus 36 anos e
tirar foto com meu presente de aniversário, um inigualável busto do Mestre Yoda
feito de MDF. Fomos dormir.
O amanhecer seguinte, dia em
que se completaram 39 semanas de gestação, foi como o anterior, porém, mais
doloroso. As contrações ainda não eram seguidas o suficiente para se
enquadrarem tecnicamente como um trabalho de parto, mas a intensidade da dor
era progressiva. À tarde, a Roberta se submeteu a uma sessão de acupuntura para
acelerar, de maneira “natural”, o trabalho de parto. Olha, acupuntura e
homeopatia são como aquela famosa frase castelhana sobre bruxas: “Yo no creo en brujas pero que las hay las
hay". Pois, coincidência ou não, as contrações se tornaram
insuportáveis menos de duas horas depois. À noite, deitada na cama, ela me
olhou, chorando, e disse que não aguentava mais. Falei para ligar para a
obstetra, que fosse feito o melhor e que eu a apoiaria. Havia o receio de uma
cesariana prejudicar a descida do leite, mas assumimos esse risco.
Após o telefonema, enquanto
minha esposa reunia forças para se arrumar, dei banho na Glória, nossa filha
mais velha. Enquanto a secava, revelamos que sua irmã nasceria naquela noite.
Ela respondeu: “Sério? Ah, fiquei muito animada!”. Ligamos para as irmãs da
Roberta, duas das dindas da Glória. Nathalia conseguiu vir para aquela noite,
mas Victória só conseguiria chegar na manhã seguinte. Minha sogra também viria.
Haveria festa do pijama na nossa casa, e do alvorecer de uma vida, no hospital.
Tudo já estava no carro
desde o dia anterior e saímos em disparada, embora não houvesse motivos para
enfiar o pé no acelerador, afinal, apesar das dores, a bolsa sequer havia
estourado. Eu estava ansioso, nervoso, feliz, enfim, tudo junto, o que talvez
tenha sido registrado pelos pardais da cidade. Fosse no asfalto, fosse no
paralelepípedo, a velocidade foi elevada, e aquele chacoalhar detonava a pobre
da Roberta. “Porra, amor! Assim eu vou parir no carro, caralhoooo!!”.
Ah, como eu amo os seus
xingamentos cujas exclamações são antecedidas pela palavra “amor”. Acho tão
meigo. Ela estava certa, como (quase) sempre, mas minha ansiedade a ignorou,
conduzindo-nos irrefreavelmente para frente e frente e rápido. No asfalto,
encarei a pista exclusiva para ônibus que, naquele horário, estava livre para
outros veículos. Pensei: “Por que esse bando de barbeiro fica trancando o
trânsito e não usa essa pista? Que otários!”. Assim que ingressei na tal pista
livre da direita, o trepidar causado pelo asfalto deformado por freadas e
arranques dos ônibus, pior do que o de uma estrada de chão esburacada, me
mostrou quem era o verdadeiro otário. E a Roberta me xingando entre uma
contração e outra.
Então, olhei para o painel
do carro e vi que estávamos na reserva de combustível desde o dia anterior. Ou
seja, poderíamos ficar empenhados no caminho. Não chegaríamos ao hospital,
nossa filha nasceria na Avenida Cavalhada, eu cortaria seu cordão umbilical com
a chave do carro e... NÃO! Despertei de meus delírios e encostei o carro no
primeiro posto que apareceu. “20 pila!”, pedi, e passei minha chave ao
frentista. Com a mangueira, ele despejou um cuspe num copo semelhante a um
coletor de exame de urina. Depois, com uma seringa, puxou metade do líquido e,
enfim, o despejou em nosso tanque. Solidário com nossa situação, deu um gole em
um martelinho de Caninha 51, agachou-se e soltou uma baforada bônus para
garantir que chegássemos ao nosso destino.
Ao menos, foi assim que
enxerguei o que ocorria.
Paguei e seguimos adiante.
Chegamos ao hospital Divina
Providência e fiquei procurando a vaga para gestantes, mas não a encontrava e
amaldiçoava o mundo por isso. A Roberta olhou para mim e disse: “Amor, é uma
emergência obstétrica, me deixa na emergência! Não é em vaga!”. Como eu odeio
me sentir burro. Deixei-a ali e fui estacionar. Subimos juntos, ela com muitas
dores e eu, aliviado por termos alcançado nosso destino.
Chegando ao centro
obstétrico, sentamos na sala de espera. Só nós dois estávamos lá. Ah, e a
novela das nove, ou seja, éramos eu, minha esposa e uma janela para um esgoto
moral e dramatúrgico. Queria ter visto algo melhor antes de ser pai pela
segunda vez. Não demorou para chamarem a Roberta para a primeira triagem e,
depois, a conduziram para aguardar uma segunda. Nesse último caso, disseram-me
para aguardar. Aguardei.
Sentei-me novamente na sala
de espera. Eu e a TV. Temendo ser lobotomizado antes do parto, levantei-me e
mudei o canal. Nunca fiz isso na vida, mas me perguntei: “Por que raios eu, que
sou o único aqui, sou obrigado a assistir a essa porcaria?”. Botei no Show do
Milhão e assisti a um pobre coitado que não sabia responder a uma questão
sequer, e a sábios universitários dando palpites furados para as perguntas mais
idiotas.
Enquanto isso, o funcionário
da empresa de filmagens parceira do hospital foi conversar com a Roberta no
exato momento em que ela estava sofrendo uma contração monstruosa.
Educadamente, ele aguardou pelo seu término. Então, perguntou se ela gostaria
que o parto fosse registrado, ao que ela respondeu que sim, mas que ele deveria
conversar com... e veio outra contração, e ele aguardou outra vez, dessa vez
conferindo se alguém lhe havia enviado alguma mensagem pelo Whatsapp. Encerrada
aquela sessãozinha de dor, Roberta conseguiu terminar a frase: “Sim, mas
conversa com o meu marido, Renan”, e veio outra contração.
Eu coçava meu pescoço, minha
cabeça, levantava, andava de um lado a outro, e nada, ninguém vinha falar nada,
a recepcionista sumira, enfim, eu estava em uma prisão, condenado a assistir a
um programa ridículo ou a outro, degradador de espíritos. O operador de câmera
apareceu, disse que Roberta estava bem e falou dos seus serviços. Topei e o
contratei.
Em seguida, a recepcionista
enfim apareceu. “Sr. Renan, a sua esposa será internada e o parto por cesariana
acontecerá à meia-noite. Só vou jantar rapidinho e já lhe trago os papéis”.
“Jantar rapidinho?”, pensei.
“Desculpe, mas agora são 23h15min e...” tentei argumentar, mas ela logo
interrompeu: “Voltarei logo, não se preocupe”. Fui um bunda-mole, deveria ter
exigido a merda dos papeis naquele instante, mas acho que foi o efeito do Show
do Milhão ou da novela das nove.
Eram 23h40min quando a
obstetra e sua equipe chegaram. Ela me encontrou na sala de espera e disse:
“Então, tudo certo? Vamos lá?”. Eu disse que ainda não havia formalizado a
internação e tudo mais que a recepcionista que jantava enquanto atualizava suas
redes sociais havia me passado.
Cinco minutos depois da
chegada da obstetra e mais de trinta após a saída para a janta, a recepcionista
retornou e, em dois minutos, me passou os papeis para levar até o térreo, no
setor de internações. “Ela deixou para fazer depois algo que poderia ter feito
em DOIS MINUTOS?”. Não estava no clima para brigar e eu tinha que correr.
Antes, porém, me foi permitido dar um beijo na Roberta que, inexplicavelmente,
ficou por mais de uma hora sozinha, se contorcendo com dores, enquanto eu fui
mantido na sala de tortura, digo, de espera. Fui correndo fazer a internação, e
o procedimento durou infinitos quinze minutos. Ou seja, a janta da recepcionista
atrasou em pelo menos quarenta e cinco minutos o parto da minha filha, e esse
foi o mesmo tempo extra, e desnecessário, de dores por contrações de minha
esposa.
Enquanto assinava os papeis,
minha mãe ligou. Atendi e disse o que estava fazendo, mas ela queria detalhes
do que ocorria, saber como a Roberta estava, e a Glória, e o parto, e as
condições do hospital, a cotação do dólar, e tive que desligar, mas não sem
antes dar tchau e mandar um beijo esbaforido de ansiedade.
Antes de retornar ao centro
obstétrico, corri até o estacionamento e peguei as bolsas da nossa caçulinha.
Fechei o porta-malas e, ao disparar para retornar, tropecei lindamente naquela
maldita barra de ferro que fica no chão para brecar pneus traseiros dos carros
e impedi-los de baterem no parapeito do edifício. Não cheguei a cair, mas o
movimento que fiz arrebentou, sei lá como, a alça da bolsa novinha em folha.
Então, segui correndo, mas abraçado às bolsas. Finalmente, cheguei até o centro
obstétrico, mas me pediram para aguardar no corredor.
Além da cesariana a que se
submetia minha esposa, outro parto ocorria. Eu estava sentado em frente à sala
onde ele acontecia, em cuja porta havia uma placa muito bonita e delicada com
uma simpática ilustração de uma doula abraçada a uma mulher sorrindo, com a
legenda “parto humanizado”.
Naquele momento, senti-me
desumano, afinal, nossa filhinha viria ao mundo por um procedimento cirúrgico,
algo alienígena, certamente, afinal, como pode ser considerado “humana” uma
invenção da humanidade? Não, o negócio é trabalho de parto por uma semana e
dane-se. Isso é o que tornará uma mãe mais “humana”, e não a maneira como ela
criará seus filhos, os valores que ela transmitirá, sua presença no dia-a-dia,
não, nada disso é relevante, pois o que realmente importa é como escorregar a criança
para a luz. Claro, não estou defendendo o outro extremo, as cesarianas
ejetoras, de data marcada, sem nada de trabalho de parto, não, não é isso, mas
me incomoda a deturpação das palavras. Que chamem de “parto desmedicamentoso”
ou “parto desprovido de técnicas ortodoxas médicas” ou, como antes faziam,
“parto natural”, simplesmente. Ah, claro, tem a doula, então acrescente “parto
natural com assistência especial”. Agora, se um tipo de parto é o “humanizado”,
então o outro é o “desumanizado”, e me desagrada o uso inapropriado de palavras
e significados.
Passado o desabafo e voltando
à narração dos eventos, da sala do tal parto humanizado vinham gritos que
certamente causariam inveja à mais sombria câmara de tortura. Não estou
exagerando, pois os berros da mãe faziam-me crer não que ela estava dando à
luz, mas que era serrada ao meio. Sério, nunca ouvi nada igual. Eram gritos e
gritos, e choro, e gritos, um mais intenso do que o outro, e a dor fazia tremer
as paredes daquele lugar. Eu queria me concentrar, queria ficar orando pelo
parto da Roberta, mas a dor daquela mãe rasgava a minha alma e mantinha meus
olhos arregalados como se assistisse a um filme de terror. E as médicas,
enfermeiras e técnicas que passavam por mim riam, claro, aquilo deveria ser rotina,
mas era rotina para elas!
Então, a porta da sala do
parto humanizado se abriu e uma mulher saiu. Ela olhou para o corredor onde
havia um rapaz que andava de um lado para o outro olhando o celular, bebendo um
suco de caixinha no canudinho e com a máscara abaixo do queixo. A mulher o
chamou e disse que alguém ali da sala, não sei se da equipe ou a mãe que se
esforçava para parir como a natureza ensinou, o queria lá. Ele nada falou, mas
apenas manteve suas sobrancelhas erguidas e os lábios contraídos. Seu olhar era
entediado e de desdém, mas atendeu ao chamado. Largou o celular e o suquinho,
passou o álcool em gel nas mãos, recolocou a máscara e foi cumprir o seu dever,
seja lá qual fosse. Não sei a mágica daquele cara, o botão que ele apertou, mas
a mãe deu apenas mais um grito que, finalmente, foi seguido pelo choro do bebê.
O homem, então, saiu da sala como entrou, indiferente e enfadado, mas com o
peito estufado como se tivesse beijado a mulher mais linda e inacessível da
festa. “Eu sou foda”, era o que estava na sua testa. Ele retornou até onde
estava o celular e seguiu se atualizando nas redes sociais. Seu suquinho logo
terminou, conforme anunciado pelo ronco que vinha do fundo da caixinha. Fiquei
abismado.
Finalmente, fui chamado
solenemente pelo operador de câmera que registraria o nascimento da nossa
filhinha caçula. “Renan, chegou a hora! Pode vir!”. Levantei-me e fui. Entrei
na sala e a Roberta sorria docemente, um sorriso que só uma anestesia bem dada
em meio ao tormento da dor consegue gerar. Aliás, o anestesista era o mesmo do
parto da Glória, um inglês radicado há muitos anos em Porto Alegre, e por uma
fração de segundos pensei, como ocorrera anos atrás: “O que leva um anestesista
inglês a viver em Porto Alegre?”. Casos assim sempre me fazem questionar sobre
a legitimidade do que poderia nos levar a morar fora do país e daquilo que
realmente procuramos. Bom, mas esse pensamento foi mais breve do que um piscar
de olhos.
Antes que eu conseguisse me
aproximar da Roberta, o câmera me interrompeu: “Renan, desculpa, será que daria
para tu entrares de novo, para que possamos captar melhor esse momento?”.
Então, rebobinei um dos momentos mais emocionantes da minha vida para que o
registro espontâneo fosse editado para outro mais, sei lá, adequado. Sugeri
entrar caminhando em slow motion, mas o operador de câmera falou que não seria
necessário. Certo ou errado, admito que o registro ficou muito bom!
Finalmente, duas horas
depois de separados, pude estar ao lado da Roberta e compartilhar aquele
momento. A cesárea acontecia e, ao fundo, a versão para bebês de “Let it Be”,
dos Beatles. Nossa obstetra, dra. Cláudia, sempre delicada, afetuosa e, ao
mesmo tempo, profissional, conduziu tudo com maestria e doçura. O anestesista
era celebrado pela Roberta, e o câmera registrava aquele momento inesquecível
com precisão.
Então, finalmente, às
0h28min do dia 23/10/2021, ela nasceu. Amélia, nossa filhinha caçula. Seu choro
foi um alívio e a alegria tomou nossos espíritos. Não parávamos de sorrir. Deus
nos presenteara, mais uma vez, com uma preciosidade, e o milagre da vida se
consumara.
Amélia nasceu e toda a
confusão ficou para trás, quando o caos foi superado pelo cosmo, e a ordem veio
à tona, com vida, alegria, brilho e esperança.
Deu tudo certo. As horas na
sala de recuperação foram cansativas, mas passaram rápido. Fomos para o quarto
que dividiríamos com outra família, mas ela partiu antes do meio-dia, e tivemos
aquele espaço com exclusividade por mais de um dia inteiro, incluindo um
pernoite. No dia seguinte, 24/10/2021, antes das 20h, deixamos o hospital e
retornamos para casa, onde fomos recepcionados pela Glória, agora promovida à
irmã mais velha, que exultava de alegria ao ver a maninha pitoca, e pelas
dindas Nath e Vicky, que cuidaram com carinho da afilhada.
Deus é bom sempre, e sempre
Deus é bom. Amélia, bem-vinda a esse mundo caótico, filha amada, um mundo que,
apesar de suas confusões, sempre é colocado nos eixos pelo poder do amor e pela
força do nascimento de uma criança amada e aguardada.
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