O que é o tempo? Uma
pergunta complicada, não? Mais difícil ainda é responder o que fazer com a
chegada dos presentes trazidos por ele. Pois essa é a reflexão apresentada em
“A Chegada”, de 2016, um filme original, inteligente, complexo e emocionante
que nos contempla com uma lição para a vida.
Trata-se da história do que parece o início de uma invasão alienígena. Os humanos buscam entender as intenções daqueles que chegaram sem serem convidados. Assim, convocam uma graduada linguista, Louise (Amy Adams), para tentar traduzir as mensagens grunhidas pelas criaturas. Experiente, ela percebe que pela escrita a missão se mostraria mais viável, o que se revela exitoso. A dos aliens, ao contrário da humana, tem uma lógica espiralizada, ou seja, não se dá por frases com aparente início, meio e fim, mas através de símbolos que lembram espirais, e é a partir disso que se dá a grande mensagem do filme: o tempo não é linear, mas um grande espiral, não havendo passado ou futuro, mas apenas o presente.
Ilustrando de uma forma mais simplista, é como se o tempo, em vez de uma linha, se apresentasse como um livro, um romance na sua estante. Ele está lá, com seu início, meio e fim, com seus dramas pessoais, conclusões surpreendentes, tristes, felizes. Você o conhece. Sabe da sinopse, dos personagens e do final. Ao retirá-lo da estante, você tem o poder de pular para as suas últimas páginas ou selecionar as mais interessantes. Também lhe é viável lê-lo paralelamente, ou seja, ler um pouco do início e dar uma espiada mais para o final. A tendência, no entanto, é obviamente pegarmos a obra e iniciarmos sua leitura do começo. Ainda que saibamos o que poderá vir a acontecer com alguns personagens queridos, nos deleitamos e aprendemos com cada página de suas histórias pessoais. Segundo o filme “A Chegada”, assim seria o tempo. Tudo estaria acontecendo concomitantemente, sendo o presente por vezes visitado por lembranças que se confundem com o que parecem premonições.
Certo, a metafísica da moral do filme estaria plenamente compreendida e ela, por si só, já seria rica. No entanto, e se você soubesse que escolhas do presente o levariam a grande sofrimento no futuro, como ocorre com a protagonista? Ainda assim, como ela, se manteria no caminho original? Essa é a lição mais profunda da obra.
Viver é sofrer. Claro, não devemos buscar o sofrimento, mas aceitá-lo. Estar em paz com o fato de que sofreremos na vida, e que nosso final e dos nossos queridos talvez não venha a ser, como em Titanic, aconchegante como o de Rose, mas trágico, gélido e precoce como o de Jack, não se confunde com uma passividade diante dos desafios que nos aguardam e espreitam, mas se revela uma resignação de que eles integram a nossa existência. Uma existência não-linear, mas espiralizada, em que o passado está sempre vivo e presente enquanto caminhamos rumo ao futuro.
Assim, terá valido a pena viver experiências se soubermos que elas terão um desfecho trágico, triste ou insatisfatório, simplesmente? Voltando para Titanic, Rose teria se relacionado com Jack se soubesse o que o aguardaria?
Essas perguntas são as que instintivamente somos levados a fazer em tais situações, mas elas se revelam ardilosas por se limitarem a conectar decisões do passado com consequências frustradas, ignorando o principal: a jornada. Ainda que os eventos tenham conclusões, boas ou ruins, o que não só pode, mas deve ser mantido vivo e presente são os ensinamentos, as riquezas, os amores, as alegrias, as conquistas, o aconchego, a paz, enfim, todos os elementos positivos que integram uma jornada, os quais, como Viktor Frankl nos ensina, podem ser encontrados inclusive nos momentos mais sombrios de nossas existências.
A jornada, portanto, ecoa constantemente e se revela não como uma linha reta, mas como um espiral aparentemente caótico, mas inteligentemente pensado de forma cósmica, que se funde com o passado, o presente e o futuro. Ela não pode ser datada, mas apenas sentida. A jornada não começa nem termina, mas se origina de algo já existente e permanece além daquilo que poderíamos interpretar como um ponto final. A jornada, enfim, sempre é presente.
Logo, e voltando ao filme, os tristes e “irrefreáveis” acontecimentos que esperam pela protagonista não são páreos para a maravilha da jornada a ser trilhada, da linda e rica, ainda que breve, vida a ser vivida entre ela, sua filha e seu marido, e do quanto essa experiência se revelará bela e recheada de sabedoria. Ela poderia evitar esse destino, mas também sabe que, embora inevitáveis lágrimas a aguardem, ainda assim a jornada terá valido a pena, não por uma razão utilitarista, mas por simplesmente compreender a relevância daquilo como um elemento integrante da sua existência.
A mensagem da obra, portanto, é de que a vida deve sempre ser permeada por esperança na beleza e na riqueza da jornada, devendo seu contrário, a desesperança, ser mantido longe, ainda que sofrimentos e as piores perspectivas estejam à espreita. O desespero vem justamente da ausência de assimilação acerca da riqueza da jornada e de que aquilo que parece o fim definitivo das coisas, na verdade, é apenas mais uma vírgula das páginas de um livro cujo conhecimento acerca de sua completude é reservado apenas a Deus.
O clímax do filme se dá quando enfim conseguem traduzir as tais intenções dos “visitantes”. Eles explicam que vieram trazer um presente: uma arma! Assim, o mundo se posiciona para um conflito iminente e fica claro que tudo irá para os ares. Acontece que a palavra “arma”, na verdade, poderia ser sinônimo de “ferramenta”, como a protagonista insiste antes de serem tomadas decisões precipitadas. Essa foi uma sacada duplamente interessante do filme, tanto em termos linguísticos quanto naquilo que efetivamente se buscou transmitir. A mensagem, aqui, é que os presentes da vida, ou seja, aquilo que ela nos oferece, podem ser ferramentas para construirmos algo valoroso, mas que também são capazes de serem usados de forma deturpada como armas destrutivas. Um martelo é feito para pregar, mas também pode ser utilizado para rachar cabeças. Deve-se, com sabedoria, fazer bom uso da chegada daquilo que nos é dado em nossas jornadas. Embora não tenhamos pleno controle quanto a mantermos uma casa de pé, depende apenas de nós fazermos o melhor uso, na obra, das ferramentas à disposição. O fundamental é utilizarmos corretamente o martelo e sermos gratos por tê-lo em mãos para darmos o nosso máximo na jornada de construção da nossa história.
Não importa o que nos espera lá adiante, bastando reconhecer e viver, de coração aberto, a maravilha que nos rodeia aqui e agora e que ecoará para sempre em nossos espíritos. É o beijo no cônjuge, o sorriso do bebê, os primeiros passos da criança, o abraço do filho, o colo da mãe, o ombro do pai, o apoio do irmão, a mão do amigo, a conquista profissional, a vitória na batalha, a superação de uma doença, a refeição deliciosa, a paisagem esplêndida, enfim, breves momentos que se revelam, na verdade, infinitos. Diante da chegada dos presentes da vida, que possamos vivenciá-los intensamente e por eles sermos gratos por integrarem nossa história.
*Imagem: https://galoa.com.br/blog/chegada-traz-sensibilidade-e-historia-cativante-ficcao-cientifica
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