Ontem falei sobre a história
de Númenor, relatada no conto “Akallabêth” (presente em “O Silmarillion”), um
arco importante da Segunda Era do universo criado por J. R. R. Tolkien e que
antecede as histórias conhecidas pela maioria das pessoas e narradas em “O
Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”. Encerrei com a provocação sobre a presença de
Sauron entre nós. Porém, onde estaria a nossa Númenor?
Sauron
sabia que o poder do povo de Númenor estava enraizado na memória da virtude plantada
em seus corações, simbolizada em Nimloth, a Árvore Branca que reluzia nos pátios
do rei, e na fidelidade aos mandamentos dos Valar e, acima de tudo, a Ilúvatar,
o único digno de ser cultuado. Enquanto essa chama tremulasse e o brilho da
verdade iluminasse os caminhos de seus inimigos, força bélica alguma os derrubaria,
afinal, nenhum exército é capaz de fazer sucumbir uma civilização virtuosa,
pois sua alma segue de pé mesmo após a queda de seu último homem, disposta a,
com seu sopro, tocar os corações de qualquer um, mesmo dos invasores que pisam
sobre os monumentos que a exaltam. Logo, não será transpassando a carne
daqueles que representam essa civilização que ela tombará. É preciso
enfraquecê-la a partir do envenenamento de seus espíritos, tornando-a
vulnerável para inimigos externos ou para a sua própria autodestruição.
Ciente
dessa verdade ilustrada por Tolkien, Abraham Lincoln, quase um século antes,
disse: “A América nunca será destruída do
lado de fora. Se vacilarmos e perdermos nossas liberdades, será porque nos
destruímos.” O célebre ex-presidente dos EUA sabia que o principal valor e
o motor da força e da prosperidade de sua nação era a liberdade, a qual jamais
poderia ser derrubada por um inimigo externo enquanto acesa sua chama entre
seus conterrâneos. Ao mesmo tempo, compreendia suficientemente o espírito
humano para perceber a necessidade de seu povo se manter vigilante, pois de
nada adiantaria proteger a tocha da virtude contra as tempestades que vêm do
outro lado da muralha se, na segurança do castelo, ela não for alimentada por
seus guardiões.
Tolkien
faleceu no início da década de 70, e suas lendas antecedem os anos 50. Em vida,
ele presenciou apenas a face bruta do fascismo, nazismo e do socialismo chinês,
soviético e europeu. A contaminação da Escola de Frankfurt e de outras
correntes começou a ser ostensivamente plantada no meio cultural justamente na
época em que o autor estava em vias de partir, e a colheita de tal semeação
começou a se dar principalmente depois da queda do Muro de Berlin, da URSS e do
comunismo do Leste Europeu. Não, suas histórias não são alegorias ao mal dos totalitarismos,
embora estes se mostrem como a mais evidente oposição política ao bem. Mesmo
assim, os arquétipos desenvolvidos se revelam inegavelmente aproveitáveis para
entendermos o que vem acontecendo com o mundo desde a queda de Morgoth, digo,
da URSS.
A
decadência da civilização numenoriana é uma bela representação da queda de um
povo a partir do apagar da chama das virtudes que o conduziu à glória. Pois nós
sabemos qual a nossa Númenor. Lincoln já sabia. Se ela afundar, o cataclismo não
se limitará às suas terras, mas, como na Arda de Tolkien, tudo mudará, e a
sombra que vem do leste crescerá.
*Imagem: https://www.artstation.com/artwork/3oe9qD
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