Um
dos exercícios mais brochantes após uma obra excitante sobre algo histórico é
conferir o que é fato e o que é ficção. É quando descobrimos que o protagonista
sequer existiu, que uma traição determinante para os rumos da narração jamais
aconteceu, que um romance tampouco chegou perto de ocorrer. E o que dizer de assistir a um filme
com um historiador amador ao lado, o tempo todo assoprando notas de rodapé para
desmentir o que está sendo exibido à audiência? Toda a experiência vai para o
brejo.
Agora,
e quando os fatos tornam a ficção menor? Geralmente é o contrário, e a ideia
das obras baseadas em fatos reais não é mentir, em si, mas pegar um ou vários eventos interessantes e adaptá-los na forma de uma narração coerente romanceada, ou seja, com um início,
meio e fim dramaticamente aceitáveis. Se não houvesse Jack e Rose, Titanic
(1997) seria um mero documentário do History Channel, por exemplo.
No
último dia 14, escrevi a maior aventura vivida pela minha avó Martha. A história
se passou em meados da década de 90. Essa é a clássica da vó,
que adora contá-la, mas, também, passados quase trinta anos, nem sempre está
disposta a repeti-la. Pois a escrevi como lembrava, e, claro, fiz algumas
adaptações estéticas. Minha avó, ao ouvi-la, ficou muito feliz e aprovou o
conto, mas teceu algumas correções. O maldito tira-teima fato x ficção! Porém,
ao contrário do que geralmente ocorre, arrisco-me a dizer que boa parte dos fatos são
ainda melhores do que a ficção. Aí vão eles:
-
Minha avó não estendia roupas no varal, mas lia um livro, na sala de jantar,
sobre erisipela, doença que acometia sua mãe. Ela não viu os bandidos entrarem,
mas ouviu, nada fazendo porque pensava serem pedreiros que há pouco haviam
deixado sua casa.
-
o bandido armado não era o que fora revistar o quarto do meu tio, mas o que
permaneceu com minha bisavó Elvira na sala de estar, a qual, no início do
assalto, não assistia à TV, mas estava deitada em seu quarto. Os conselhos ao
meliante de fato foram dados.
-
Minha avó realmente trancou um bandido (que, repito, não estava armado) no
quarto do tio Bóris.
-
Em seguida, foi a uma janela e pediu, aos gritos, por socorro. O criminoso que
estava com Elvira foi até minha avó, com arma em punho, e a jogou na cama de
outro quarto dizendo que ela iria se ver com ele. Martha achou, inclusive, que
seria violentada. Levantou-se e entrou em luta corporal com o bandido,
desarmando-o e dando-lhe as famosas coronhadas acompanhadas pela igualmente
verdadeira frase ufanista de orgulho gaúcho. Então, ele, branco de medo, fugiu,
acompanhado do comparsa que realmente saíra pela janela do quarto do meu tio e,
com a cachorra Ariana em seu encalço, correra rumo ao muro. Minha avó ainda
tentou atirar contra os invasores, mas a arma falhou.
-
Depois, a casa se encheu de vizinhas, todas curiosas com o que ocorrera. Para
cada uma que chegasse, ela repetia a história. E elas foram ficando, ficando,
ficando, e uma abria uma cerveja aqui, outra ali e, no final, tinha fila para fazerem
xixi. Depois, quando foram embora, a adrenalina restante de minha avó foi usada
para limpar o seu banheiro que ficara cheirando a mijo.
Então,
fugi muito dos fatos? Minha avó disse que não. Pois essa é a maravilha ao se
contar uma história na forma de um mito, adaptando-a para torná-la mais dramática
e menos fria. Por isso as roupas no varal em vez do livro de erisipela, a
Escolinha do Professor Raimundo como pano de fundo para a bisa Elvira, a
agilidade do anão da Terra-Média, a encarada de velho oeste. De qualquer forma,
editei a história de forma tênue, deixando-a mais fiel ao que de fato aconteceu.
A erisipela, porém, segue de lado.
Estraguei
sua experiência? Espero que não, mas, como a própria protagonista me presenteou
com a versão original, sinto-me na obrigação de fazer a pequena alteração. Por
outro lado, ficou ainda melhor.
* Imagem: montagem entre a foto da Martha verdadeira e a da "velhinha" que poderia brotar da imaginação do leitor (a da velhinha armada é artística e pública, disponível em: https://br.depositphotos.com/stock-photos/velha-com-arma.html).
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