Na última semana, mais um remake de Cinderela
foi lançado. Disponível no Amazon Prime, pega o gancho da história clássica,
mas a “adapta” aos “tempos atuais”. Ali, a gata borralheira não quer um príncipe
encantado, mas ser independente e reconhecida como uma grande estilista, a Fada
Madrinha é um homem, mas ainda assim Fada Madrinha, entre outras mudanças. Ah,
e Cinderela é latina. Nada de loirinha opressora como mocinha, portanto. Enfim,
mais um remake e sua ânsia por “agradar o novo público”.
Jordan Peterson é um grande estudioso de arquétipos.
Diferentemente de alegorias, que se tratam, na arte, de verdadeiras propagandas
a favor de uma visão, os arquétipos são representações universais de ideias
universais e não tão óbvias. Ele defende, por exemplo, que A Bela Adormecida é
uma obra recheada de arquétipos fenomenais, e que a adaptação da Disney, feita
nos anos 50, apenas a favoreceu. Por outro lado, acusa produções como Frozen de
serem alegorias, ou seja, a partir do momento em que o espectador capta o que ali
se busca promover, todo o panfleto é revelado. É por isso que Tolkien, mesmo um
cristão fervoroso e quem convencera C. S. Lewis da verdade do cristianismo, não
gostava das Crônicas de Nárnia, especialmente da principal delas, O Leão, a
Feiticeira e o Guarda-Roupa. Tanto as histórias de Elsa quanto as de Aslam têm
em comum o fato de serem alegorias, mas elas foram criadas para sê-lo, são boas
e, o principal, originais. O problema é quando se faz um remake para transformar
o clássico revisitado em uma alegoria.
Cinderela não é uma criação da Disney. A conhecida
animação dos anos 50 é uma adaptação muito semelhante à primeira versão dos Irmãos
Grimm (com exceção do pai, o verdadeiro vilão da obra primordial, mas isso é
outro papo...), e o filme de 2015, estrelado por Lily James, foi, com maestria
e beleza, a versão live action do
desenho, preservando toda a essência da história original. O clássico traz
diversos arquétipos que podem ser explorados, que vão desde a tal busca por um
príncipe encantado, passando pelo sapato no pé errado entre outras questões. Cinderela
vale uma série própria de crônicas, sem dúvidas. Sendo uma obra recheada de
sabedoria e de arquétipos dignos dos mitos antigos que ajudaram a moldar nossa ética
e apontar para valores universais e civilizatórios, tais pontos não devem ser
maculados, pois foram eles que tornaram a obra original eterna, ou seja, clássica.
Claro, não sou contra remakes, mas me oponho a transformá-los em alegorias,
seja qual for a ideia que se busque promover. É uma armadilha para o público.
Portanto, se a ideia é uma história de
fantasia socialmente anacrônica (mas em um cenário montado para ficar com uma
cara de séc. XVIII), cuja protagonista, como alguma jovem empreendedora da
geração Z do séc. XXI, quer se tornar uma business girl, com direito a Fada
Madrinha sem gênero definido, então pensem e desenvolvam um enredo assim, do
zero, que promova essas ideias. Desafiem sua criatividade e seu intelecto,
ousem fazer arte sobre uma tela branca e intocada em vez de pichações sobre pinturas
já existentes. Não mexam em um clássico que, por si só, muito ensina sobre a
humanidade, pois, ao invés de remake, o resultado poderá ser um desmake.
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