Ela entrou, rendida, seguida pelos dois pilantras. Na sala de estar, a velha Elvira, sentada majestosamente na poltrona que sustentava seus quase 90 anos e quilos, assistia à Escolinha do Professor Raimundo. Ria do Seu Boneco quando foi surpreendida pela filha e dois... Seus Bonecos (?). “É um assalto, velha! Não se mexa!”, anunciou o homem armado. Elvira apenas puxou um pelinho que nascera de seu queixo. Lamentou que os dois pararam na frente da TV bem na hora do “Eu vou pra galeeeera...”, mas logo entendeu que a coisa era séria. O outro bandido, desarmado, falou: “Quero dinheiro vivo! Onde fica a grana?”. Martha não sabia. Ela mantinha o suficiente para as compras do dia-a-dia, uma mixaria na despensa e nada mais. O rapaz viu, então, o quarto do filho de Martha, Bóris. Percebeu ser de alguém jovem e supôs que ali encontraria algo. “Você vem comigo!”, mandou. Os dois foram para o cômodo.
O outro meliante, armado, permaneceu na sala, cuidando da ameaçadora Elvira. Não sabia que a velhinha era uma bandeira branca ambulante, tão branca quanto seus cabelos alvos como a neve. Sempre de olho, o criminoso abriu uma toalha de mesa bem no centro da sala e sobre ela passou a colocar tudo quanto era objeto que achava ser de valor. Relógios importados (do Paraguai), bandejas de (cor) prata, brincos e colares (pintados) de ouro, entre outras preciosidades. Elvira, então, ousou intervir: “Meu querido, você é um jovem bonito, robusto, saudável. Larga essa profissão. Você ainda vai se dar mal. Dá tempo! Procura algo honesto pra ganhar a vida e...”. Ela tentou seguir a sua exortação, e o bandido parecia confuso com as doces palavras daquela senhora, até que ouviu da TV o Professor Raimundo encerrar o programa com a célebre frase: “E o salário, ó!”. Como se voltasse a si, o homem interrompeu os conselhos da anciã: “Cala a boca, velha!”.
Enquanto isso, Martha era mantida com o outro bandido no quarto do seu filho Bóris. O assaltante revirava tudo à procura de dinheiro vivo. Ela, assim como Elvira, resolveu usar o poder das palavras, mas de maneira diferente: “Ooolha... acho que você deveria ter cuidado, porque meu filho já deve estar chegando do trabalho. E ele é forte e brabo. Cuidado!”. O homem parou por um instante, olhou para Martha, sacudiu os ombros e riu. Se acreditou ou não, jamais se saberá, mas, estranhamente, aumentou o ritmo de sua busca. Martha percebeu, então, que a chave do quarto estava do lado de fora da fechadura. Era a sua chance. Com a agilidade de um anão da Terra-Média, saiu do quarto e ali trancou o bandido. Em seguida, correu para uma janela e gritou: “Socorro! Socorro! Ladrão!”.
O criminoso que estava com Elvira partiu para cima de Martha, pegou-a pelo braço e a jogou na cama de outro quarto. Ela, deitada, ouviu do homem: “Agora você vai ver!” Temeu ser violentada e sentiu que não havia mais nada a perder. Quando o bandido se aproximou, ergueu-se e entrou em luta corporal com o inimigo, desarmando-o, logo depois, falando, enquanto lhe desferia três coronhadas: “Eu não sou mulher qualquer! Sou gaúcha, tchê! Toma, toma, toma!”.
O criminoso não esperava por aquela reação, afinal, era apenas mais uma idosa. Acontece que não era uma anciã comum, mas a corajosa Martha!
Ao mesmo tempo em que ouvia seu amigo bater desesperadamente na porta, pedindo para sair, o homem não se mexia, afinal, estava diante de uma velhinha armada. Sua pele morena logo se converteu em branca como leite. Foi um breve momento que pareceu uma eternidade. Como uma desafiante do velho oeste, ela encarava o fora-da-lei.
Então, o bandido preso no quarto parou de esmurrar a porta e pulou pela janela. Para a sua surpresa, porém, não estava livre: deparou-se com a cadela Ariana, grande e feroz com estranhos. Ele gritou: “Sujou! Sujou! Cachorro! Sujou!” , e saiu correndo rumo ao muro, com a cachorra em seu encalço. O comparsa deu as costas à Martha e foi atrás. Ambos pularam o muro mais rápido do que gatos e fugiram. Martha ainda tentou desferir alguns tiros naqueles ordinários, mas ou a arma falhou ou ela não soube manuseá-la. Não importa.
Os criminosos desapareceram junto com as sombras daquele entardecer e nunca mais ousaram voltar para encarar aquela velhinha porreta.
Mas... a história não terminou ali. Afinal, Martha pediu por socorro, não? Pois ele chegou, mas depois de tudo já ter acontecido: um exército de vizinhas mexeriqueiras loucas para saber o que ocorrera. Para cada uma que chegasse, ela repetia a história. E elas foram ficando, ficando, ficando, e uma abria uma cerveja aqui, outra ali, sempre incentivadas pela Velha Elvira, que curtia uma gelada e um bom papo. Com a cerveja, veio o xixi e, no final, o banheiro passou a ser usado pelas amigas como se fosse o de uma rodoviária.
E esses foram os cheiros que encerraram aquele dia: do banheiro, vinha o de mijo; das cuecas dos bandidos, cocô; mas nada superava a fragrância da coragem de Martha, tão marcante que segue exalando em nossos corações.
“Pai, conta história da Bisa Martha e os dois bandidos?”, pede minha filha, quase todos os dias. E eu repito, e repito, e repito. E sei que ela repetirá e, assim, o bálsamo da galhardia da minha avó, que hoje completa 93 anos, seguirá perfumando as sagas da família por muitas gerações.
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