Era
uma vez um homem que nasceu para iluminar todos os outros. Era nisso em que seu
pai acreditava e, portanto, deu-lhe o nome de Defensor da Espécie Humana e da
Moral. Como era muito comprido, chamava-o apenas pelas iniciais, Dehm, e assim
ficou conhecido. Um dia, seu pai o fez jurar para ele, e em nome dele, de sua mãe
e dos seus antepassados, que o filho deveria fazer jus ao seu nome. Ele jurou,
e os juramentos aos pais e não se descumprem.
Ele
cresceu, estudou muito, recolheu-se em um mosteiro, raspou a cabeça e não mais
permitiu que seus cabelos pesassem sobre a mente e bloqueassem a luz da
sabedoria divina que cresceu ouvindo que teria. Escreveu uma obra sábia sobre o
mais sagrado livro do seu povo, e muitos não apenas o liam e com ele aprendiam,
mas o recomendavam. Virou referência nos mosteiros, nas Ordens de Cavaleiros e
no círculo real.
Um
dia, o Rei Tofear, admirador do monge Dehm e de sua a sabedoria a respeito do
Livro Sagrado, fazendo uso de seus poderes, o nomeou para a Ordem dos Sumo
Sacerdotes, que eram aqueles que faziam a interpretação definitiva sobre o significado
das Escrituras Divinas e do que as divindades queriam para seus fiéis. Lá, ele
encontrou muitos Sumos Sacerdotes que também o admiravam.
O
tempo passou e o reinado de Tofear chegou ao fim. Assumiu Jambo, o novo rei,
que tinha um apoio imenso do povo. Jambo, porém, ao contrário de seus
antecessores, falava coisas que desagradavam aqueles que, há séculos, compunham
a aristocracia e concentravam o poder. Também não distribuía para as Ordens dos
Cavaleiros os tesouros da coroa, como era comum entre os reis, deixando de
fazer o mesmo entre os Mensageiros, que eram aqueles que liam e explicavam as
ordens e os eventos reais. Jambo, igualmente ignorando indicações das Ordens
dos Cavaleiros, nomeava para o Alto Conselho Real nobres distintos, alguns deles
heróis que haviam enfrentado batalhas severas contra inimigos que se diziam
protetores do povo, mas que apenas queriam o ouro do reino. Isso desagradou a
muitos.
Ao
mesmo tempo, muitos do povo se mostravam incomodados com a forma como o Livro
Sagrado era interpretado. A Ordem dos Sumos Sacerdotes, então, nomeou Dehm como
Lança Inquisitorial e Xerife da Ordem, que seria responsável por investigar,
acusar, julgar e executar aqueles que criticavam o seu entendimento e dos
demais Sacerdotes Supremos. Os alvos sempre eram os que defendiam o rei Jambo.
Muitos
sacerdotes comuns que viviam em meio aos plebeus discordaram da criação do
cargo de Lança Inquisitorial e Xerife, pois não havia previsão a respeito no
Livro Sagrado. Porém, a Ordem dos Sumo Sacerdotes era última palavra sobre a
interpretação das Escrituras, e entendeu que não havia qualquer desrespeito às
leis sagradas.
Então,
muitos começaram a ser presos por apenas dizerem o que pensavam, apesar de o
Livro Sagrado não condenar quem discordasse da interpretação dos Sumo
Sacerdotes, mas apenas se fizessem algo que frontalmente aviltasse o que constasse
nas palavras deixadas pelos deuses ao povo.
Dehm,
escoltado pelos demais clérigos supremos, sempre justificava que as prisões buscavam
proteger a liberdade das pessoas e do reino, a manutenção da coroa e a defesa das
Ordens dos Cavaleiros e, principalmente, da própria Ordem dos Sumos Sacerdotes.
Insistia que, liderados pelo rei Jambo, os hereges buscariam destruir a nação e
extinguir todas as Ordens que a compunham.
Diante
da perseguição que ia desde a interceptação de cartas, proibição de oradores de
falar em praças públicas, confisco da prata obtida por mensageiros de
pergaminhos, prisão de religiosos que ousavam discordar em seus templos das
interpretações vindas dos Sumo Sacerdotes, até a intervenção em conversas entre
alegres beberrões em tavernas, uma multidão de plebeus e nobres se uniram para
protestar contra o terrível Dehm. Entre eles estava o próprio rei Jambo, que
disse que não se submeteria às interpretações do Lança Inquisitorial e Xerife,
clamando pela liberdade daqueles que este considerava como hereges.
Os
Mensageiros que, antes, eram contemplados pelo tesouro real, mas que não mais o
recebiam, anunciavam que o rei violava os dizeres do Livro Sagrado, embora, em
seus relatos, não reproduzissem tudo o que o monarca dissera. Apenas insistiam
que aquele rei insuflava seus súditos contra as Ordens que mantinham o reino. Não
questionavam, porém, o cargo de Lança Inquisitorial e Xerife da Ordem dos Sumos
Sacerdotes, nem as prisões e perseguições daqueles que a criticavam e que
discordavam publicamente de Dehm.
Então,
Dehm agiu e, apoiado por todos os demais Sumos Sacerdotes, anunciou que o rei
Jambo não mais poderia seguir no trono, e deixou claro que nenhuma manifestação
do povo que representasse entendimento diverso seria tolerada, pois seriam
defesas e propagações de mentiras, e mentiras jamais poderiam ser respeitadas. Avisou
que o Livro Sagrado dizia que mentira era pecado. Logo, como mentira seria
aquilo que a Ordem dos Sumos Sacerdotes interpretaria como tal, então não
haveria qualquer violação aos dizeres divinos na perseguição aos mentirosos.
Ele
ordenou aos Dragões Reais, a mais alta Ordem de Cavaleiros do reino, que
depusessem Jambo, pois o rei estaria violando o Livro Sagrado e ameaçando todas
as Ordens que mantinham a harmonia da nação. Eles subiram em seus cavalos e se
dirigiram ao Palácio Real. Ao chegarem lá, porém, desmontaram, sacaram suas
espadas, jogaram-nas no chão e deram as costas para o Palácio. Eles não
cumpriram a ordem de Dehm.
Um
deles se manteve em seu cavalo e ergueu a espada, dizendo que não cumpriria
ordens que aviltassem o Livro Sagrado. Dehm, ao saber disso, mandou outros Dragões
Reais para prender aqueles que haviam descumprido suas ordens, mas, ao chegarem
lá, não encarceraram os insurgentes, mas uniram-se a eles. E, assim, a cada
tropa enviada por Dehm, mais insurgentes se revelavam.
O
Sumo Sacerdote buscou ajuda com os demais, e eles sempre concordavam com ele. Chamaram
as Ordens de Cavaleiros que não mais recebiam a cota do tesouro real com que se
acostumaram durante a Dinastia da Constelação Vermelha, nem as benesses da
curta Dinastia Tofear. Eles apoiaram Dehm, e formaram um exército relevante que
marchou rumo ao palácio. O povo, testemunhando o que acontecia, uniu-se aos
Dragões Reais, e uma guerra sangrenta estava em vias de estourar.
O
dilema era cruel. Caso o rei Jambo cedesse, não haveria conflito, mas consolidar-se-iam
os desmandos de Dehm e sua legitimidade como Lança Inquisitorial e Xerife da
Ordem. A liberdade de quem interpretava de maneira diversa o Livro Sagrado
estaria ameaçada para sempre e todos temeriam ousar criticar os Sumos
Sacerdotes. Por outro lado, se o monarca insistisse em não cumprir as ordens, o
povo e os Dragões Reais o defenderiam e a catástrofe seria inevitável. Todos
perderiam, e o reino ficaria traumatizado para sempre.
Jambo,
do alto da torre de seu palácio, vendo aquela multidão, ficou tentado. Afinal,
já havia uma tirania no reino, mas ela não vinha do trono e sim da Ordem dos
Sumos Sacerdotes, especialmente de Dehm. Estaria lutando pela liberdade de seu
povo, pelo que é certo. Porém, a que preço? Desistir, contudo, seria a vitória
dos que, na verdade, ignoravam o Livro Sagrado. O rei não conseguia se mover.
As dúvidas o congelavam.
Então,
do meio do exército formado pelas Ordens de Cavaleiros que gostariam de mais
uma vez ter acesso às cobiçadas cotas do tesouro real, surgiu o próprio Dehm. Ele
vestia uma armadura dourada que refletia o sol, o que também fazia a sua cabeça
calva, pois não usava elmo. Montado em seu cavalo branco, aproximou-se das
tropas dos Dragões Reais e do povo que a cercava. Eram milhares, talvez milhões.
Ele
pegou uma bolsa de couro e dela retirou três itens: o Livro Sagrado, o seu
famoso livro sobre o Livro Sagrado e um pergaminho. Colocou os livros no chão,
em sua frente e, de pé, desenrolou o pergaminho. Era a carta de seu pai,
avisando-o de que desonrara o seu nome. Ela dizia que nada defende mais a
humanidade do que a liberdade, e se a liberdade era ofendida, então a própria
humanidade estaria sob ameaça. Assim, em vez de Defensor da Espécie Humana e da
Moral, ele estaria se convertendo em opressor, e a moral que sustentava em suas
interpretações a respeito das palavras divinas promoviam, na verdade, a
imoralidade.
Dehm
sabia que não tinha escolha. Mesmo acima de todos, mesmo sabendo que as
interpretações da Ordem dos Sumos Sacerdotes não poderiam ser questionadas, não
teve coragem de contrariar o mandamento de que juramentos aos pais não poderiam
ser quebrados. Então, estalou os dedos e uma carroça se aproximou. Nela havia vários
rolos de pergaminho, todos do seu trabalho como Lança Inquisitorial e Xerife da
Ordem, além de um galão com óleo. Ele o abriu, despejou o líquido na carroça,
soltou o cavalo que a conduzia e, com uma pira, incendiou-a.
Os
rolos se reduziram a cinzas, e, naquele mesmo dia, foi extinto o cargo de Lança
Inquisitorial e Xerife da Ordem. Todas as prisões dela decorrentes foram
revogadas, e os perseguidos agora estavam livres para criticar as interpretações
da Ordem dos Sumos Sacerdotes.
Jambo
reinou por mais alguns anos, até que seu tempo no trono chegou ao fim, mas segundo
as leis do Livro Sagrado e não conforme a vontade dos seus desafetos.
A
liberdade voltou a pulsar junto ao povo que, livre para falar, também o era
para pensar. A livre circulação de ideias levou à prosperidade daquela terra, e
graças à liberdade para buscar a verdade, a mentira era revelada e se tornou
cada vez mais difícil dominar os desavisados. Depois, vieram outros reis, alguns
melhores e, outros, piores do que Jambo, mas não mais houve um Sumo Sacerdote
como Dehm, que não ousou quebrar o juramento feito ao seu pai, ele, sim, herói
do reino!
Onde
estará, hoje, o pai de Dehm?
*Imagem: https://br.pinterest.com/pin/467178161340691339/
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